Não deve ter sido pequena a energia que as ministras Rosa Weber e Carmem Lucia mobilizaram para não gargalhar ao ouvir Gregório Duvivier discursando na audiência pública no Supremo Tribunal Federal.[1] É uma pena que a câmera tenha focado o comediante e não seus cúmplices. Apenas em dois breves instantes a câmera mostra as ministras, com feições sérias. É bastante razoável supor que ao menos um leve sorriso tenha escapado diante da engenhosidade do comediante: dispor da formação do inconsciente que supera a censura para falar sobre a censura.
A fala de Duvivier foi motivada pela indignação da classe artística frente às ofensas que o diretor da Funarte lançou contra a atriz Fernanda Montenegro. Sem qualquer noção sobre a função do artista como construtor de representações-palavra para os conflitos da sociedade, o diretor do órgão federal de fomento às artes reagiu com agressividade à fotografia da atriz vestida como bruxa prestes a ser queimada em uma fogueira de livros, produzida para uma edição da Revista 451, referência em resenhas sobre livros:
um amigo meu, bem-intencionado, me perguntou hoje se não era hora de mudar de estratégia e chamar a classe artística pra dialogar. não. absolutamente não. trata-se de uma guerra irrevogável. a foto da sórdida Fernanda Montenegro como bruxa sendo queimada em fogueira de livros, publicada hoje na capa de uma revista esquerdista, mostra muito bem a canalhice abissal destas pessoas, assim como demonstra a SEPARAÇÃO entre eles e o povo brasileiro. temos, sim, que promover uma RENOVAÇÃO completa da classe teatral brasileira. é o ÚNICO jeito de criarmos um RENASCIMENTO da Arte no Teatro nacional. pq a maioria da classe teatral que aí está é radicalmente PODRE. e com gente hipócrita e canalha como eles, que mentem diariamente, deturpando os valores mais nobres de nossa civilização, propagando suas nefastas agendas progressistas, denegrindo nossa sagrada herança judaico-cristã, bom - com essa corja NÃO HÁ DIÁLOGO POSSÍVEL [2]
O título da “revista esquerdista” que tanto desagradou Roberto Alvim faz menção à temperatura do fogo necessária para queimar livros, 451 Farenheit, e ao título do livro distópico de Ray Bradbury, publicado em 1953, sobre uma sociedade na qual livros são proibidos. Bruxas, livros, e o padroeiro dos humoristas, citado por Duvivier, São Lourenço, foram queimados na fogueira.
O primeiro chiste lançado por Duvivier para quebrar a censura, é a fala de São Lourenço que, na grelha, teria dito ao carrasco “pode virar, esse lado já está bom” e por isso é padroeiro dos humoristas (o santo fez uma piada) e dos cozinheiros (ele foi grelhado). A descrição do suplício do santo normalmente causaria horror aos ouvintes, e portanto desprazer pelo aumento da carga energética causado pela imaginação da cena de um homem em uma grelha em brasa. Porém, a sagacidade das palavras do personagem, que desloca a noção de grelha como instrumento de tortura para a grelha do fogão, inverte a valência da cena ao abrir um campo para a brincadeira com as palavras, para um prazer infantil. O excesso de energia gerado pela descrição da tortura libera-se nas gargalhadas ouvidas ao fundo, ou seja, ao iniciar a fala com a descrição de uma cena de suplício, Duvivier conseguiu “aumentar o dispêndio psíquico no ouvinte e, assim, ampliar também o montante a ser liberado para descarga pelo riso.”(FREUD, 1905/2017, p. 250). É muito interessante notar que o riso da platéia é mais audível quando a ideia de “cozinha” fica explícita na informação de que São Lourenço é o patrono dos cozinheiros. Apenas a frase “este lado já está bom” não foi suficiente para driblar a resistência da maioria dos presentes ao horror da tortura.
Foi um início de discurso arriscado, visto que, em uma sessão de discussão contra o autoritarismo obscurantista do atual governo federal, a predisposição dos ouvintes seria blindarem-se contra ofensas aos direitos humanos. Como explicado por Freud, “algum grau de inclinação, uma certa indiferença, a ausência de elementos que possam despertar sentimentos contrários à tendência do chiste, é uma condição indispensável para que a terceira pessoa colabore na conclusão do processo do chiste.” (ibid., p. 207).
O fato de que a vítima do chiste, São Lourenço, teria sido o próprio autor da piada auxilia no drible à objeção de não rir do sofrimento atroz. Quando o autor do chiste é a própria vítima da piada, o chiste é menos hostil. De fato, Duvivier coloca-se na posição de cúmplice do santo piadista, como se fosse um ouvinte, e ri com prazer da piada sobre a grelha, reforçando que a autoria do chiste seria do próprio São Lourenço: “do chiste que me ocorreu, que eu fiz, não posso rir eu mesmo, apesar da evidente satisfação que sinto com ele” (ibid., p. 204).
Para além do deslocamento de valência da palavra “grelha”, de tortura pelo fogo a labaredas de força de vida, a piada do humorista – e tanto faz se o nome dele é Lourenço ou Gregório – trabalha com a condensação de dois significados no mesmo significante, convocando “o uso múltiplo do mesmo material”, obtendo das palavras um ganho de prazer, “algo que era permitido no estágio do jogo, mas foi bloqueado pela crítica racional no curso do desenvolvimento intelectual.” (ibid., 241)
O processo de condensação inerente ao chiste aproxima o Witzarbeit ao Traumarbeit pois em ambos há a participação de processos inconscientes que conseguem vir à tona por um caminho constituído pela rede representacional pré-consciente. No sonho, esta rede poderia ser ativada por um resto diurno, como, por exemplo, ter visto a fotografia de Fernanda Montenegro na Revista 451, conduzindo o trabalho do sonho a um caminho que possivelmente incluiria bruxas, fogo, grelha, inquisição, horror, tortura, perseguição política, ditadura, etc., e que poderia servir para a emergência de um desejo inconsciente, que aproveitaria a oportunidade para se ligar à cadeia de representações acionada pela fotografia da atriz. Vamos supor que o núcleo deste desejo, que jamais acessaremos, estivesse de alguma maneira relacionado ao sadismo infantil. Se ele emergisse, romperia a proteção estabelecida pelo pré-consciente a ideias conscientemente inadmissíveis, e acordaria o sonhador, em angústia. Para realizar o desejo infantil que se ligou à rede representacional, o trabalho do sonho cria uma alucinação imagética disfarçada por figurabilidade repleta de sobredeterminações, estabelecendo assim um compromisso entre o desejo inconsciente, que quer se realizar, e a censura do pré-consciente, que vela o sono do sonhador. No chiste, a rede representacional inclui, pela condensação, um elemento de sentido dúbio, e é o jogo com a palavra que conduz o mergulho rápido em conteúdos inconscientes relacionados a experiências prazeirosas infantis.
O infantil é, com efeito, a fonte do inconsciente; os processos inconscientes do pensamento não são senão aqueles produzidos única e simplesmente na infância. O pensamento que mergulha no inconsciente com vistas à formação do chiste está apenas procurando pelo velho lar de seu jogo primitivo com as palavras. O pensar é recolocado por um momento no estágio infantil, a fim de apoderar-se novamente da fonte infantil de prazer. (Ibid., p. 242)
A rápida vivência de um prazer infantil produz o riso junto com a imaginação da cena terrível de uma pessoa grelhando. Além disso, a transgressão da inibição de rir do sofrimento já foi realizada pelo humorista. Ele fez esse trabalho consigo e oferece-o à plateia, ao terceiro elemento do chiste. O ouvinte “compra o prazer do chiste com um gasto próprio muito pequeno. […] As palavras do chiste que ele escuta fazem surgir nele, necessariamente, aquela representação ou conexão de pensamentos a que também nele se opunham obstáculos internos tão grandes.” Assim, o autor do chiste consegue cumplicidade do ouvinte por suborná-lo com um presente, recebido quase de graça, ou ao menos a preço energético bem menor do que teria que pagar para ter esse prazer, propiciando que o ouvinte economize “um gasto psíquico ao menos tão grande quanto as forças correspondentes da inibição, supressão ou repressão delas.” O humorista escancara a representação que a muito custo o ouvinte mantinha fora de cena (obscena). Torna-se inútil continuar a dispender energia mantendo-a escondida naquele momento. O que fazer com essa sobra inesperada de energia? Gargalhar. O ouvinte “ri esse montante.” (ibid., 212) Portanto, o chiste tendencioso, de conteúdo latente relacionado a fortes inibições, causa prazer no ouvinte porque economiza momentaneamente a energia que era gasta para manter a inibição de uma ideia.
Mais adiante em seu discurso, Gregório Duvivier avisa que “o humorista não pode ter medo.” A frase anuncia que ele falará sem medo da censura do governo federal, mas também sem medo no sentido de que falará com chistes, sem inibições, desafiando a auto-repressão, sem medo dos conteúdos conscientemente refutados. Lança então à plateia um chiste hostil, de cunho sexual, direcionado à figura do censor, hostilidade que encontra cúmplices naquele público: “o censor é o pudico que passa o dia à procura de sacanagem”. Ouvem-se risos. Gregório dá mais um passo no teste da cumplicidade, chamando o censor de um beato que passa o dia “sublinhando pepecas e bilaus”. Nesse instante, a câmera foca as ministras. Carmem Lucia permanece séria. Rosa Weber desvia a atenção anotando alguma coisa em um papel. O homem sentado à mesa olha para o celular. A terceira mulher encara o comediante com um sorriso contido. Ao fundo, silêncio. Nós, na frente de um computador, rimos, ouvindo o discurso sobre “pepecas e bilaus” em privacidade, mas a plateia da audiência pública segura o decoro. Tanto melhor, pois na próxima piada, a gargalhada vem em dobro: “este governo é um pré-sal da estupidez.” Por que nessa hora de chiste brilhante sobre governo, economia, energia não-renovável, e censura, Duvivier não ri? É claro que o discurso foi escrito antes, e que os processos primários não atuam enquanto o comediante lê suas piadas. Porém, ele segura também o regozijo que sente com o riso da plateia. O assunto nessa parte é sério demais para que o comediante deixe o prazer do exibicionismo infantil tomar a cena escancaradamente.
A explicação de Freud para o fato de o autor de um chiste espontâneo não rir é econômica: apesar de o autor do chiste ter conseguido economizar energia por não censurar uma conexão de ideias, fazer isso deu trabalho, que gastou essa mesma energia.
Pode ser que, apesar da suspensão do investimento de inibição, nenhum montante de energia capaz de ser exteriorizado tenha sido liberado. Pois na primeira pessoa ocorre um trabalho do chiste que tem que corresponder a um certo montante de novo gasto psíquico. A primeira pessoa fornece ela própria, portanto, a força que suspende a inibição; disso resulta certamente um ganho de prazer para ela – no caso do chiste tendencioso um prazer bem considerável – pois o prazer preliminar obtido com o trabalho do chiste se incumbe da suspensão de inibições ulteriores; mas o gasto com o trabalho do chiste é subtraído a cada caso do ganho com a suspensão da inibição, um gasto que não ocorre no ouvinte do chiste. (ibid., 214)
Segundo Freud, “rir dos mesmos chistes é uma prova de grande compatibilidade psíquica” (ibid., p. 215). Duvivier buscou os pontos de compatibilidade psíquica entre o público que defende a liberdade de expressão do artista e membros do Supremo Tribunal Federal, incentivando-os a rir da figura do censor, ou seja, subornando-os com o presente de energia disponível para ser gasta no riso. Além disso, Duvivier sabe que encontrará ouvintes nas reproduções de seu discurso na internet. Teria ele sido mais eficiente na tarefa de rebaixar a censura às artes usando outro tipo de comunicação, como uma descrição factual de torturas sofridas por artistas durante a ditadura militar? Caetano Veloso, na mesma sessão no STF, optou por falar a convertidos, citando fatos da ditadura militar. No entanto, atualmente, fatos parecem ser menos relevantes do que narrativas que cada sujeito sente-se no direito de criar. Nesse cenário, seria possível chamar a classe dos censores para um diálogo e convencê-los do perigo do cerceamento da liberdade artística? Sem recusar a comunicação, e assim diferenciando-se do diretor da Funarte, e elaborando-a com chistes, a disseminação pelas redes sociais do discurso de Duvivier talvez seja mais bem-sucedida em conseguir aliados para a causa da liberdade artística do que um discurso em linguagem formal. De fato, não só Duvivier, mas também outros chistosos da era das redes, intuem o poder do chiste, criando miríades de “memes” anônimos que momentaneamente aliviam nossa angústia com esse governo.
Tanto nos sonhos, nos sintomas, esquecimentos, atos-falhos e nos chistes, o Inconsciente faz-se perceber. Apesar de não estar anatomicamente definido, ele dá indícios de sua existência por essas formações. Podemos considerá-las como uma sombra de algo que não vemos. Mas se vemos a sombra da coisa, temos ao menos a percepção de que a coisa existe. Sabemos que a sombra de um objeto muda de acordo com a luz que nele incide. Ao examinar as várias formações do Inconsciente, Freud parece estar estudando diversas formas da sombra deste lugar dinâmico do aparelho psíquico, para assim ter uma melhor ideia do que ele é, sabendo que “o Inconsciente é algo que realmente não conhecemos, mas que somos forçados a admitir por conclusões necessárias.” (Ibid., 231) Duvivier produziu uma prova da relevância do Inconsciente: rir a partir de um chiste alivia e dá esperança sem escamotear a gravidade do problema, mas, ao contrário, explicitando-a.
Referências Bibliográficas:
FREUD, S. Obras completas, volume 7: o chiste e sua relação com o inconsciente (1905). S. Paulo: Cia das Letras, 2017.
1 cf. https://www.youtube.com/watch?v=H0s1OjSxXlM. Acessado em 23/11/2019
2 cf. comentário de Roberto Alvim no Facebook, disponível em https://www.facebook.com/roberto.alvim.9/posts/3599692733390327. Acessado em 23/11/2019.
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