Um texto de 2012, resumido, para marcar a vontade que tenho de escrever muito sobre a obra de Basbaum, especialmente após visitar a exposição "O que é...?", em agosto de 2024, na Galeria Marli Matsumoto.
Vista da exposição "O que é...?", de Ricardo Basbaum, na Galeria Marli Matsumoto, 2024. Foto: Paula Braga
Em 2003, Ricardo Basbaum forneceu um depoimento à rede de informações sobre arte e-flux, respondendo à provocativa proposta de Jen Hoffmann “The next Documenta should be curated by an artist”. Basbaum propõe uma Documenta que não abra as portas para o público, mas que circule entre um público envolvido com arte, uma exposição para “consumo interno", feita por artistas e para artistas. A questão é: o que é ser um artista? A ideia de Basbaum não é excluir o público mas, ao contrário, torná-lo parte do circuito de criação, inseri-lo na linha diagramática “amizade-coletivo-multidão-comunidade.” Ou seja, transformá-lo em artista:
"Se um artista-curador pretender dirigir/curar/planejar o assim chamado ‘maior evento de arte contemporânea do circuito de arte do Ocidente’, ele ou ela certamente terá que incluir, entre os diversos tipos de artistas (...), pensadores contemporâneos de variadas disciplinas (...) – todo um conjunto de não-artistas, tais como pessoas trabalhando em qualquer ocupação ou campo de pesquisa, em qualquer lugar do mundo." (Basbaum, " Eu amo os artistas-etc." )
Essa vontade de transformar exposições de arte em uma “arena pós-pública”, pressupõe obras que trazem imbuídas em seu conceito a figura do espectador como disseminador da própria obra. A rede é fraca quando existe um nó que centraliza de todas as conexões, como o museu, pois é esfacelada se esse centro falhar. As conexões entre os nós da rede não podem depender de um nó central. É preciso que os nós estejam conectados por várias opções de caminhos, vários fios, como por exemplo, vários espectadores carregando o conceito da obra em seus corpos e pensamentos, enquanto percorrem a vida.
O participador, termo que nos anos 1960 convocou o espectador a retirar-se da passividade contemplativa, reaparece no século XXI na arena pós-pública de Basbaum. Seguindo o "Propor propor" de Hélio Oiticica, não há performance pré-definida para as obras-estruturas de Basbaum. Há o “auto-teatro”, o fazer de cada um, que é ao mesmo tempo coletivo mas também individual.
A obra-estrutura não necessariamente une os corpos, mas transforma-os em um coletivo de indivíduos que experimentaram uma certa emancipação, que coloca em xeque a distribuição de papéis e a distância entre intelectos. É o poder de ser igual aos outros, nem melhor nem pior, e ainda ser singular.
Esse novo sujeito participador forma-se na relação com a obra Você quer participar de uma experiência artística?, de Ricardo Basbaum, desenvolvida desde 1994. A obra é parte do projeto NBP - Novas Bases para a Personalidade, lançado em 1990 e cujo mote são os elos entre comunicação e arte contemporânea, discutidos dentro do campo da “política da subjetividade”. NBP é “quase um programa para ações”, e se desenvolve em torno de 3 vetores: a “imaterialidade do corpo” (a matéria orgânica dissolvida na imaterialidade dos ritmos tecnológicos, como na rede), a “materialidade do pensamento” (que tem potencialidade plástica, pode ser moldado, como defendido pela escultura social de Josef Beuys) e o “logos instantâneo” (conhecimento visual “arrebatador, súbito, envolvente, imediato, instantâneo”). O artista explica que a sigla NBP se organiza em torno de 3 conceitos:
"N - Novas: “obsessão e necessidades modernas”
B - Bases: “estruturas, por que não?”
P - Personalidade: “discussão que chama para si os campos da psicanálise, biologia, antropologia, análise comportamental e estatística, mecanismos socio-econômicos, etc., junto com questões artísticas (...), um terreno de amplas e movediças dimensões." (Basbaum 2008a, p. 83)
A sigla, então, declara uma certa genética da obra, desde a herança moderna da busca pelo novo (e da transformação social), passando pela valorização da obra como estrutura cara a artistas dos anos 1960 e 1970, até a multidimensionalidade da arte “pós-moderna”, que certamente não está “depois do moderno”, mas sim “ligado ao moderno”. O “pós” não se desliga, nem graficamente, do “moderno”.
Instância de NBP, a proposta Você gostaria...? é “um projeto acerca do envolvimento do outro como participante em um conjunto de protocolos indicativos dos efeitos, condições e possibilidades da arte contemporânea (...) tornando visíveis redes e estruturas de mediação."
O participante recebe em casa uma peça de aço pintado com a qual deverá realizar uma experiência artística durante cerca de um mês. Não há nenhuma instrução sobre o que deve ser feito com a peça, que tem 125 x 80 x 18 cm e não se assemelha a nada: é rasa demais para ser uma bacia; é grande demais para ser uma panela; é resistente demais para ser destruída; é pesado; não cabe em um armário. Escapa de qualquer uso pré-definido. As pessoas que se inscrevem pela Internet para receber o inútil e incômodo objeto têm a única obrigação de documentar a experiência realizada e enviar os registros para um website de armazenamento de dados do projeto. Cria-se uma história para o objeto na rede, que vai sempre crescer e ecoar o projeto pois não depende do artista, é descentralizada: os objetos de aço pintado com os quais os participantes realizam uma experiência artística não retornam ao artista, mas circulam de participante a participante. Até 2006 houve 3 cópias do objeto, e mais 20 cópias foram produzidas e circulam desde que o projeto foi apresentado na Documenta 12, em 2007. É interessante notar que a proposta Você gostaria...? levou o artista a imergir na relação de “rede de amigos de amigos” antes do advento das redes sociais:
"quando o processo se iniciou [em 1994], era necessário persistir e fazer um esforço significativo (..) para conseguir a aceitação e colaboração das pessoas. No entanto, desde o ano 2000 o processo reverteu-se: o objeto chega aos participantes antes de mim, uma vez que os participantes mesmos estão passando-o adiante para as pessoas que conhecem. Agora, me encontro na situação interessante de conhecer pessoas através do objeto, o que é muito prazeroso em termos de acesso a outras pessoas e circuitos." (Basbaum, 2008b, p. 59)
Para Basbaum, o espaço virtual onde esses registros são armazenados funciona como um espaço público contemporâneo. Nos primórdios do projeto, antes da popularização da Web, Basbaum planejava arquivar e expor os registros de convívio com o objeto em galerias e instituições de arte. Quando a Web passou a ser um território de passagem pública, o artista obteve da Documenta 12 o financiamento para a construção do website, que liberou o projeto do espaço institucional convencional. O site perdurou por alguns anos, desenhando as conexões entre participadores de Você gostaria...? .
Instalado no livre território da Web, O projeto Você gostaria...? se insere na estratégia de lançar estruturas públicas para uso dos participantes (ou seguidores). Essa estrutura pública invisível foi corporificada na Documenta 12 em uma “estrutura arquitetônico-escultórica”, um lugar para ficar e acessar os registros de documentação do projeto em 3 monitores de TV, enquanto o quarto monitor exibia imagens captadas em circuito-fechado, da própria instalação e de seus visitantes, que passavam então a fazer parte da história do projeto.
A estrutura arquitetônico-escultórica é feita com ferro, assemelhando-se a uma grade, algo que acolhe mas também delimita. Um dos compartimentos da instalação de Basbaum exibia o objeto de aço pintado, trancado atrás das grades, inacessível, estabelecendo um contraste entre os vívidos registros de experiências e a peça sem vida em exposição.
Ricardo Basbaum, Instalação na Documenta 12, 2007.
A noção de contaminação entre sujeito e objeto é uma constante no pensamento de Basbaum e levou à criação do “superpronome” “euvocê” que admite também a versão “vocêeu”, indicando “contaminações recíprocas”, a ser usado em “circunstâncias em que é importante enfatizar os vínculos (afetos, membranas, interfaces)”. A origem desse amálgama é expressa no neologismo YOUwillbecoME, que para Basbaum caracteriza práticas artísticas que ativam o espectador, como em Hélio Oiticica e Lygia Clark, dissolvendo a distinção sujeito-objeto, artista-espectador. Não escapou ao artista a transformação de nós, pronome, em nós, substantivo, como em “nós da rede”: o coletivo e a teia, enredados, revelando assim
“a noção de que a formação de grupos parte de um funcionamento em rede, multiplicando um circuito através da operação sem fim de conexão, desconexão, re-conexão (...) O interessante é assumir que as técnicas de sobrevivência dependem completamente do processo de ligar sucessivamente mais e mais nós. Voracidade conectiva.” (Basbaum, 2008b, p. 57)
Os pronomes vocêeu e euvocê salientam ainda os vários eus que se formam na relação com diferentes vocês. Assim como a obra de arte exige o espectador para “ser”, a vida, obra que eu faço, depende das relações com vocês. A frase piegas “eu não existo sem você” adquire uma conotação tão lógica quanto a de uma sentença matemática quando enunciada no contexto de uma sociedade feita de nós ligados a outros nós.
Os registros de uso do objeto de Você gostaria...? formam os “nós” da rede representada no website do projeto. Esses registros são vídeos, relatos e fotografias que mostram bebês tomando banho na peça, hortas caseiras, concertos de música nas quais o objeto se transformou em um tipo de steel-drum, bacia para escalda pés, e um sem número de usos inventivos, ainda que não seja objetivo do projeto incitar um tipo de competição de criatividade. Como observado por Cezar Migliorin,
"O projeto de Basbaum poderia facilmente tornar-se uma busca das relações extraordinárias e espetaculares com o objeto, porém não é isso que acontece. Ao se distanciar do exótico e único, é a própria vida ordinária, que leva o objeto para a praia ou o transforma em isopor para gelar a cerveja, que ganha uma dimensão poética. Com o objeto, a banalidade é atravessada por uma escritura, por uma montagem entre os elementos que se relacionam no dispositivo – participante, praia, mar, areia, sol, água, flor, globo, bola, máscara, vídeo, artista." (Migliorin, sem data)
Em 2003, o objeto NBP esteve em mãos do coletivo de artistas Vaca Amarela, e o destino que foi dado ao objeto quase o extinguiu: o grupo doou o objeto ao Museu de Arte de Santa Catarina, transformando-o em cadáver do processo (ou souvenir) ao interromper, com a museificação da peça, a voracidade conectiva do projeto. Basbaum então resgatou o objeto, desfez a doação ao museu, para doá-lo de volta à rede, colocando-o novamente em circulação. Novamente testando quantas vidas tem o objeto NBP, o artista Jorge Menna Barreto literalmente enterrou-o, tirando-o de circulação. Não adianta tentar destrui-lo a marretadas; a destruição se dá quando ele é retirado da rede.
Você gostaria...? ativa a potência de vida ao inserir no cotidiano um elemento que clama por uma ação inventiva, por vir totalmente sem um manual, por sua forma que não se parece com nada, e que assim não se encaixa em usos e comportamentos pré-ditados. Cada experiência com o objeto NBP inaugura uma função, uma relação, do participador com a peça. Assim, o trabalho “se desdobra na invenção subjetiva como modo de resistência aos poderes produtores de identidades funcionalizáveis para o capitalismo.” Funciona como antídoto a redes ditadoras de comportamento e depende completamente do envolvimento do participador. A transformação, se acontece, é nos “nós” participadores e seguidores.
"Qualquer trabalho artístico almeja algum tipo de transformação. Qualquer trabalho artístico está ligado à transformação. Talvez porque eu venha dos anos oitenta, eu não assino embaixo de nenhuma utopia, eu não acredito que vamos chegar a um estado perfeito... sempre temos que lidar com essa mistura, um tipo de negociação, algum tipo de situação paradoxal, nunca teremos isso completamente resolvido[... ] No final da década de 1950, Hélio Oiticica e Lygia Clark podiam acreditar num tipo de transformação universal. Mas aqui eu pergunto: que transformação, como, quando? Meu trabalho tem várias ambigüidades... é muito mais um tipo de provocação. A transformação vai ser o fruto de seu próprio desejo e esforço [...] Eu acho que o meu trabalho investe no envolvimento, eu tenho que envolver o outro em todos os meus projetos: mas esse envolvimento só acontece se você quiser. Você tem que se engajar num tipo de produção, ou então nada acontece." (Basbaum apud. Curi, p. 46)
Paula Braga, 2012.
(Excerto de "Rede de ar-tista: arte na era da virtualidade das relações sociais". Pesquisa realizada entre 2010 e 2012, durante o pós-doutorado no Instituto de Artes da UNICAMP)
Referências:
Ricardo Basbaum, " Eu amo os artistas-etc." )https://rbtxt.wordpress.com/wp-content/uploads/2009/09/artista_etc.pdf)
Ricardo Basbaum (2008a), Você gostaria de participar de uma experiência artística? Tese de doutorado apresentada ao Programa de pós-graduação em Poéticas Visuais na ECA/USP, 2008. Vol. 1.
Ricardo Basbaum (2008b), Você gostaria de participar de uma experiência artística? Tese de doutorado apresentada ao Programa de pós-graduação em Poéticas Visuais na ECA/USP, 2008. Vol. 2.
Fernanda Curi, An experiment to build a free model, tese de mestrado apresentada ao Reinwardt Academy Amsterdam, 2008.
Cezar Migliorin. “Novas Bases para a Personalidade” em Revista Cinética, disponível em http://www.revistacinetica.com.br/nbpbasbaum.htm. Acessado em 20/08/2012.
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