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Writer's picturePaula Braga

Delson Uchoa: belo em si

Olhando para a beleza dos padrões simétricos encantadores de uma pintura de Delson Uchôa, o espectador tem duas opções: parar na superfície da aparência ou galgar ao Belo em si.

Uso aqui esse conceito de sonoridade platônica depois de passar três dias mergulhada no mundo do artista alagoano, cuja rotina no ateliê, perto de uma praia distante do burburinho de Maceió, inclui horas dedicadas à contemplação e ao cuidado do Belo em um sentido filosófico: na calma e na dedicação a essas pinturas gigantes cheias de tramas e cores luminosas, olhar um espelho, contemplar a beleza das coisas do mundo sensível e a partir delas almejar o suprassensível.

Quem já leu Platão percebe aqui um neoplatonismo alagoano, que traz o filósofo Plotino para a mesa onde se serve o sururu comprado nas favelas à beira da lagoa Mundaú. Para construir um texto que se aproxime desse banquete tropical, discuto a obra de Delson Uchôa seguindo a ideia de belo na filosofia antiga.

Convite ao leitor: leia reclinado num dos divãs do banquete, num salão cujas paredes estão cobertas pelas peles coloridíssimas da pintura de Uchôa e adentre um corpo do mundo que só quer atiçar, com a beleza, a busca do belo em si.


O Belo como busca da origem


Para entender a obra de alguns artistas é preciso sair da posição distanciada de espectador. Como entrar numa obra bidimensional? Obras de Delson Uchôa frequentemente têm várias camadas, peles sobrepostas, que podem ser levantadas e adentradas. Você se coloca entre duas peles coloridas, passa a ser uma das camadas da pintura. Outra experiência imersiva similar a esta de se cobrir com pintura é ser corpo tridimensional na casa-ateliê onde Delson trabalha. Se aquela casa fosse achatada em uma superfície bidimensional, teria tantas cores quanto as pinturas expostas nas várias paredes da casa.

Há pinturas no chão, há pinturas penduradas por fios, que balançam soltas no espaço e pinturas descansando em mesas enormes que ficam ao ar livre, para que o sol ajude a tinta a secar num tom mais esmaecido, e para que a chuva desenhe pequenas poças de cor. Tudo isso está cercado por um jardim aguado diariamente às 5 da manhã, com espécies raras, cultivado sem pressa, esperando a pintura da natureza crescer em seu tempo. A casa é uma pintura tridimensional que contém pinturas bidimensionais em vários planos.

Delson preparou um quarto para mim na pintura-casa, com Tear (1989) na parede em frente à cama e Calota Lunar na parede lateral. Na mesa de cabeceira deixou três livros: uma coletânea de artigos sobre o Neoplatonismo, a tradução da “Ilíada” feita pelo Haroldo de Campos, e “A Invenção de Orfeu” do poeta alagoano Jorge de Lima (“há sempre um copo de mar para um homem navegar”). Eu, que acredito no deus acaso e acho que um artista se revela pelos livros que leu, me deixo conduzir por esses três planos da casa, em feliz respeito pela sincronicidade. Frases desses livros começam a se desenhar em padrões flutuantes e invisíveis pela casa-pintura. E no jogo de dimensões e espaços, pergunto-me se tudo isso não poderia explodir para dimensões maiores que o espaço, para a quarta, quinta, sexta dimensão. Como seria a beleza crescida em extensão, volume, tempo, e sabe-se mais quais coordenadas? Seria a beleza que se pode pensar mas não se pode perceber com o corpo de que somos feitos: beleza inteligível mas não sensível.

Na teoria das ideias de Platão (lembra que no meu quarto havia o livro sobre Neoplatonismo?), nosso mundo sensível, esse que o corpo percebe, é sombra do mundo inteligível. Sombra é uma diminuição em dimensão. Um corpo tridimensional tem uma sombra bidimensional. Como fazer o caminho contrário e partir do mundo de sombras em direção ao mundo inteligível? O procedimento sugerido por Platão para o retorno à origem plena, para o retorno à casa original, é subir degraus com o impulso do amor, como quem sobe uma escada. Amor, em Platão e Neoplatônicos, nada mais é que desejo de beleza. E sendo desejo, nunca se satisfaz, então sempre quer mais beleza, sempre quer uma beleza de degrau superior.

Ama-se primeiro os corpos do mundo perceptível com os sentidos. Depois, percebe-se que a beleza não pode estar em um corpo só, e passa-se a amar vários corpos perceptíveis. Daí, percebe-se a beleza que está nas produções feitas por esses corpos, nos ofícios e nas criações intelectuais. Por fim, chega-se ao amor como desejo da máxima beleza, que é a sabedoria, e neste ponto o amante parou de amar sombras do belo e está muito próximo do verdadeiro Belo em toda a sua plenitude dimensional. Este é o Belo em si.

No Neoplatonismo da Renascença, os degraus descritos por Platão em “O Banquete” são substituídos por espelhos posicionados cada vez mais longe da verdadeira beleza. O belo do mundo material é reflexo pálido num espelho distante da beleza original.


A origem do Belo

Falando sobre sua casa-pintura, Delson costuma dizer que se sente morando dentro da baleia. Lá dentro, cercado pelas pinturas, ele habita um corpo forrado por mucosas coloridas. Sente-se pintando de dentro de uma “viva-pintura”. “Morar na pintura será perpétua reflexão?” pergunta ele. Aqui a palavra “reflexão” sugere tanto o pensamento que é degrau para se atingir o belo em si quanto a reflexão de um espelho. Morar na pintura seria olhar somente para si mesmo, para o “belo em si” narcisista? O artista que vive em sua própria obra corre o risco de, como Narciso, obsedar-se com sua própria imagem refletida no lago e ali definhar em autofagia? Não se, como o neoplatônico Plotino defende, existir o desejo de retorno à casa, à origem, num movimento cujo patrono não é Narciso, mas sim Ulisses, o herói que depois da Ilíada empreende a viagem de retorno a Ítaca desviando-se do belo sedutor de Calipso e Circe, rumo a um belo mais virtuoso, que é origem de si e portanto semelhante de si.

Delson Uchôa também caminha em busca do semelhante de si, daquela beleza que ele vê refletida em suas obras, mas que é uma beleza de maior dimensão, cujas sombras ele prossegue adicionando em camadas a obras feitas muito tempo atrás. Não pretendo sugerir que ele esteja acessando uma beleza de ordem metafísica superior. Afirmo, no entanto, que ele busca uma beleza semelhante a si -- ou semelhante a sua produção imagética -- na origem das tramas e mandalas que se acumulam nas camadas de suas obras: os padrões da artesania brasileira são usados por Delson como um âmago de onde tudo provém. E que por sua vez provém, no limite da série, de um ponto condensado, ele me diz, uma origem de tudo, que se pode chamar de belo em si ou de Uno ou de “momento imediatamente anterior ao Big Bang”. Então, que diferença faz falar do belo em si ou do belo em mim ou do belo em cada pintura e em cada corpo, se tudo já foi átomo daquele âmago denso de pura beleza indivisa? A autofagia praticada por Delson engole o todo.


Autofagia

A questão da autofagia apareceu na produção de Delson Uchôa quando ele desenrolou pinturas muito antigas, feitas décadas antes, e decidiu continuar a pintá-las, como que alimentando-se de sua produção anterior. Além disso, seu método de trabalho é autofágico por assimilar como pincelada cada marca feita pela rotina da casa, pois a camada mais antiga de cada trabalho já foi o tecido da toalha de mesa ou a resina espalhada por cima das lajotas do chão. Nesta última técnica, o artista despeja resina transparente no chão de lajotas de barro, espera a secagem, pinta no chão por cima da resina seca, pisa naquele tapete inusitado, arrasta os móveis, varre, passa produtos de limpeza doméstica no chão-pintura. E um dia, descasca a pintura do chão, deita-a numa mesa de trabalho, e a esta base cheia de memória, acrescenta elementos, linhas, cores. Exercitando a “perpétua reflexão” de morar na pintura, há algo de auto-retrato aqui, que extrapola o rosto e registra o movimento cotidiano, o tempo do retratado. Nenhuma pintura fica pronta em menos de seis meses, e o artista costuma datar o ano de início e de término de cada obra. Ela já foi chão ou toalha de mesa, e antes ainda, foi átomo do cerne do mundo. É preciso tempo para o processo criador gerar mundos.

Duas fotografias de Curral da praia mostram o acúmulo de tempos da autofagia. Na primeira imagem, feita nos anos 1980, o trabalho está instalado em uma cerca de madeira construída no mar, o curral, técnica indígena de pesca ainda usada em Alagoas para aprisionar os peixes. A pintura é uma lona branca estreita na qual o artista definiu um labirinto de figuras geométricas. Seria o trabalho a lona branca ou a interação da lona com a cerca do curral? A segunda fotografia do mesmo trabalho, feita por volta de 2006, esclarece que a obra não existe sem o curral: agora a cerca foi adicionada à lona branca original, e anda com ela, para onde o trabalho for levado.


Cultura Híbrida


Ainda em autofagia cultural, o artista olha para o espelho da arte nordestina popular, para os desenhos geométricos em carrocerias de caminhão, para os bordados, a cestaria, a cerâmica marajoara e volta, como Ulisses, para a origem virtuosa de tudo. Como ele costuma afirmar, “o abstrato não existe”. O que existe é um sistema cognitivo que não reconhece a origem daqueles padrões.

Em Alvorada, a lona vivida na rotina da casa juntou-se a uma esteira de palha, dessas usadas para banho de sol na praia, e a trama da esteira orientou os desenhos feitos com pincel. Artesanato indígena e a geometria são integrados à feitura da peça que faz parte dos “mestiços de primeira geração”, como explica Uchôa: mamelucos são as peças que têm em seu DNA o índio e o europeu. Padrões geométricos aparecem no neoplasticimo e na artesania indígena também, então é difícil dizer se a cor dos olhos vem da mãe terra ou da avó europeia, mas o certo é que algumas composições de Delson ecoam a cestaria e a arte nouveau, a luminosidade nordestina e os vitrais de catedrais. Daí Alvorada ser pintura mameluca.

Palmares e Catolé são cafuzas, mistura de elementos indígenas com elementos africanos, o que resultou numa geometria mais definida, de retângulos coloridos como em tecidos africanos. E dos mestiços iniciais, a pintura Mulata é Muxarabie, na qual o elemento africano é mouro, das treliças que resguardam a intimidade das casas na arquitetura colonial brasileira. Apresentada na 53ª Bienal de Veneza, Muxarabi é feita com três lâminas sobrepostas que podem ser manipuladas pelo visitante. A última pele é para ser usada, escrita, modificada pelo visitante, no conforto privado de ver sem ser visto, e escrever o que quiser no afago da luz filtrada pela peça.

Definida a primeira geração de hibridismo cultural no Brasil, Delson Uchôa olhou para a América Latina como um todo, e juntando-se a Torres-Garcia dirigiu-se à origem apontada pelos símbolos primitivos que povoam Rapsódia Americana e que assumem um caráter ritualístico em Catedral TG. Aqui o templo, a casa que conecta homem e mistério original, recebe as iniciais do idioma Tupi-Guarani e do nome do artista uruguaio que inverteu o mapa da América do Sul: nosso norte é o sul. Assim como o mapa de Torres-Garcia parece estar pendurado (“como um presunto”, diz Delson), a pintura Catedral TG deve ser içada durante uma cerimônia, de forma que os cincos círculos, desdobrando-se diante do espectador, enfatizem o movimento de ascensão, de distanciamento do belo material para o belo inteligível. Delson fala ainda desses círculos como luas, ostensórios e como homenagem a Oxumaré, orixá dos ciclos e simbolizado pelo arco-íris. Os círculos de Catedral TG sincretizam alegria, magia, mistério e religião, apontando para o hibridismo da alma latino-americana. Em Florão da América, os círculos estão concêntricos, sugerindo a totalidade como reunião de várias totalidades: uma América fabulosa.


A mestiçagem expandida


A série mais recente de Delson Uchôa expande a pintura e discute a ideia de cultura em tempos de globalização. Obras da série Bicho da Seda trabalham com um elemento novo que orienta a composição e padronagens da pintura: sombrinhas made in China, que colocam cores e padronagens decorativas na paisagem seca da caatinga alagoana. Evidentemente chamar esses objetos de sombrinhas é muito mais adequado a uma discussão sobre pintura expandida do que nomeá-los guarda-chuvas. As sombras são metáforas recorrentes na discussão sobre a função mimética da pintura, que olha para a natureza tridimensional e dela cria uma representação planar. Delson Uchôa salpica a paisagem da caatinga com as cores industrializadas das sombrinhas e depois registra o resultado em fotografia. Em vários registros, as sombrinhas estão narcisicamente instaladas próximas à superfície refletora de um poço de água, remetendo à beleza obsedante e aos riscos de não se observar essas fotografias para além da superfície brilhante do metacrilato. A presença de elementos industrializados e sintéticos na paisagem colore a tristeza arenosa da caatinga, mas tem seu lado feio. As sombrinhas são assustadoramente baratas, produzidas às custas de baixíssimos salários e alto impacto ambiental. Para além da superfície colorida, o belo da matéria chega a um discurso político.


Renascimento e luz

A pintura passa por mutações na obra de Delson Uchôa e na história da arte. Volta forte na arte contemporânea brasileira, com muitos jovens seguindo a vertente aberta pela exposição “Como vai você Geração 80?”, de 1984, na qual Uchôa apresentou “A festa no céu”, trabalho feito no teto do edifício do Parque Lage, como uma Capela Sistina tropical, prestando homenagem à história da arte e às particularidades do Brasil.

Nos anos 1980 Delson já era conhecedor de história da arte, que estudava voraz e solitariamente em paralelo às demandas da faculdade de medicina, concluída em 1981. O convite de Marcos Lontra para apresentar uma obra na hoje famosa exposição do Parque Lage motivou-o a juntar o que lia na coleção “Gênios da Pintura” com as referências figurativas e geométricas da pintura popular, dos parques de diversão nordestinos e carrocerias de caminhão. Interessava-o a “estridência cultural e luminosa do nordeste” e a pintura no teto é o início da integração entre arte europeia e arte popular nordestina. Para Delson, a exposição “Como vai você Geração 80” revelou a possibilidade de trabalhar a partir de um novelo de referências cujos fios até hoje ele segue. Novelo é também o título de uma pintura expandida, que Delson diz que não se importa se alguém preferir chamar de escultura, mas que são, literalmente, “sombrinhas-pinturas” expandidas para a terceira dimensão.

Novamente a ideia de um núcleo denso e total aparece no discurso de Uchôa na figura de novelo que contém todos os fios, que possa explodir em diferenciações reconhecidas como arte popular, arte europeia, figuração, geometria, símbolos primitivos, cores, natureza, água, praia, e sombrinhas. Uchôa identifica a década de 80 como o instante do Big Bang. Tudo o que é belo é brilho refletindo a luz da origem. Quem faz essa reflexão é a arte ou a natureza? É todo processo criador: natureza naturante.

Nas pinturas de Delson Uchôa o belo expande-se para muitas dimensões, sai da parede para ocupar o espaço, a casa, a caatinga, a discussão sobre arte nacional e economia global. A fotografia de Craibeira chegando à praia nos remete à pintura neoplatônica de Botticelli. Craibeira brilha com suas cores iridescentes refletindo a luz do sol, da areia e do espelho de água. Não é Narciso obsedado, é Vênus corporificando o belo.


Paula Braga, 2015.

Delson Uchoa

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