José Patrício, Expansão e retração tonal – Infinito, 2019, peças de quebra-cabeças de plástico sobre madeira edição de 3 + exemplar de exibição 114,5 x 215 cm
Tudo o que existe no mundo, em sua variedade incomensurável, é constituído a partir de um número finito de átomos, que se recombinam para formar cada flor, cada fio de cabelo, cada pedra, cada pedaço de plástico. É uma quantidade imensa de partículas, de uma grandeza muito maior do que o intelecto humano consegue conceber. Enorme, inimaginável, porém finito. O que existe de infinito é a potência criadora de combinações entre esses átomos. A essa potência infinita damos o nome de Natureza.
A obra de José Patrício é um exercício de invocação dessa força criadora. A partir de um número fixo de elementos, como dominós ou peças de quebra-cabeça, Patrício elabora variações que jogam com as possibilidades sequenciais dos elementos escolhidos. Os trabalhos mais recentes do artista empregam peças de plástico idênticas, cujas cores variam em um gradiente de 22 tons de cinzas, que passam do branco ao preto. A economia tonal salienta a estrutura combinatória de cada obra, permitindo a identificação da regra geradora da singularidade de cada trabalho.
A tarefa do artista é conceber uma fórmula matemática para cada composição de peças dentro do gradiente de cinzas. Assim, em um trabalho, ele inicia no branco e segue até o preto, para então começar de novo a sequência, montada em carreiras espiraladas, da borda até o centro de um tabuleiro. Em outra obra, a mesma ordenação se inicia no centro e abre-se para as bordas. Em uma terceira, o gradiente segue linhas diagonais dos vértices do tabuleiro ao centro, e assim… finitamente. Ao contrário da Natureza, o tempo de que o artista dispõe para o exercício dessa potência criadora é finito.
A insistência de José Patrício na repetição do processo criador é um enfrentamento do doloroso limite de tempo disponível para cada ser humano criar. Nesse sentido, é possível compreender sua obra como um exercício a respeito do tempo. Cada objeto que sai do ateliê do artista não só carrega o tempo da artesania envolvida em sua confecção, mas, principalmente, guarda uma chave de compreensão da temporalidade. O que se decifra na contemplação demorada dessas espirais não é a regra formadora da sequência; mas sim o enigma fundamental: como, de peça em peça, de passo em passo, constituir um movimento de vida encantador, no tempo de que dispomos?
O tempo é também o elemento que transporta a obra de José Patrício das diretrizes definidas pelo Manifesto de Arte Concreta, de 1930, para a sensibilidade do Manifesto de Arte Neoconcreta, de 1959. O primeiro, lançado em Paris pelo artista holandês Theo van Doesburg, preconizava que a arte de uma nova era deveria seguir seis características, facilmente identificáveis na obra de José Patrício:
1. A arte é universal: produzidas em Pernambuco nos dois últimos anos, as composições apresentadas nesta exposição são tão universais quanto uma fórmula matemática. Poderiam existir em qualquer lugar e época;
2. A obra de arte deve ser inteiramente concebida e formada pelo espírito antes de sua execução: cada arranjo de José Patrício deriva de uma regra mentalmente definida e seguida à risca;
3. A obra deve ser construída com elementos puramente plásticos, como planos e cores, de forma que o trabalho final não tenha outra significação senão “ele mesmo”: avesso à representatividade, José Patrício cria estruturas que instauram, cada uma, um elemento novo no mundo, relacionado apenas à ideia matemática que o formou;
4. A construção da obra deve ser simples e controlável visualmente: é possível identificar a regra numérica que conduziu à feitura da obra, como, por exemplo, sete peças pretas, seguidas de seis peças cinzas, seguidas de cinco peças cinza claro etc., até o branco;
5. A técnica deve ser mecânica: as obras de José Patrício são feitas pela repetição mecânica de um gesto manual, de encaixe, executado da mesma maneira qualquer que seja a mão que manipule a peça;
6. Esforço pela clareza absoluta: não há nada que não esteja à vista nas obras de José Patrício;
Dando um passo para além da racionalidade concretista, cada obra de Patrício incita questionamentos sobre o tempo. E é aí que há o diálogo com o Neoconcretismo. Não interessa tanto a excitação intelectual que a matemática explícita causa no espectador, aquela em perseguir a regra formadora da composição. Muito mais importante é o efeito sensorial, provocado pelo cinetismo óptico das peças, e o efeito psicológico, que se desdobra em várias questões temporais. Ou, dizendo isso com uma citação do Manifesto Neoconcreto,
"terá interesse cultural específico determinar as aproximações entre os objetos artísticos e os instrumentos científicos, entre a intuição do artista e o pensamento objetivo do físico e do engenheiro. Mas, do ponto de vista estético, a obra começa a interessar precisamente pelo que nela há que transcende essas aproximações exteriores: pelo universo de significações existenciais que ela a um tempo funda e revela."
Uma obra como Expansão e retração tonal é matematicamente decifrável enquanto constituída por dois quadrados e por movimentos contrários, um centrípeto e outro centrífugo, de distribuição das peças do gradiente de cinzas. É matematicamente compreensível também que as carreiras das bordas estendam-se, sem alterar a cor das peças, por mais algumas voltas na periferia do tabuleiro, resultando em listras de preto e branco. Eis o algoritmo. Mas saber disso não esgota a obra.
Sensorialmente, essa composição parece sugar o olhar para o centro de cada quadrado, que é iluminado de um lado e escuro do outro. As listras pretas e brancas das bordas confundem a percepção: são duas ou três faixas de cada cor? A análise da obra fica ainda mais interessante quando aborda as reações psicológicas do espectador que encara os dois vórtices da composição. O que eles são? A autonomia nua e cruaproduz uma espécie de aflição semiológica. Mesmo se reconhecermos a ligação com o cotidiano que as peças de quebra-cabeça sugerem – algo mais facilmente identificável nos dados e dominós de outras séries de José Patrício –, elas desafiam, em sua totalidade estrutural, nossos esforços de conectá-las a algo previamente conhecido. É como se elas fossem os “quasi-corpus” do Manifesto Neoconcreto: “um ser cuja realidade não se esgota nas relações exteriores de seus elementos; um ser que, decomponível em partes pela análise, só se dá plenamente à abordagem direta, fenomenológica”.
As obras da exposição Potência criadora infinita são seres que exigem convívio para serem conhecidos. Resta-nos entrar na relação de ser para ser com a obra, que é extremamente independente, autossuficiente, como se pudesse viver muito bem sem nosso olhar. Ela certamente não é um organismo vivo, mas é um organismo estético, o que está para além do mero objeto. Ora, o que confere o caráter de independência e silenciosa existência a esses trabalhos é justamente o tempo. Eles foram laboriosamente construídos no tempo, receberam tempo da mão que encaixou cada peça do quebra-cabeça. E agora, pulsam em uma temporalidade perene, que tem a eternidade da matemática. E nós, espectadores, somos tão mais finitos do que isso.
Paula Braga, 2020.
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