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O tempo e a crítica de arte contemporânea

Updated: Jul 13, 2020

(Comunicação apresentada na II Jornada de Filosofia, Arte e Estética da UNICAMP)


Resumo

O que é arte contemporânea? Afinal, há alguma obra que não tenha sido contemporânea de sua época? Para Giorgio Agamben, ser contemporâneo é não coincidir perfeitamente com seu tempo, estabelecendo uma relação com os contemporâneos do passado. Partindo das experiências derivadas do neoconcretismo na arte brasileira, que levaram ao amálgama entre arte e vida, argumentaremos que a desejável inatualidade do contemporâneo não implica em estar à frente ou em retroceder, simplesmente porque, na elaboração de signos de vida, não há uma linha de posicionamento dos tempos. Os contemporâneos, do passado e do presente, coexistem em cada instante, o que possibilita à obra de arte abrir um túnel ao que permanece como projeto e projétil, atuando em um tempo da linguagem melhor definido como presente do intempestivo.

Palavras-chaves: Tempo; Crítica de arte; Agamben; Oiticica;












1. Reflexões temporais em uma época de perplexidade com o refluxo

Vivemos em uma época de refluxo. A arte, que produz signos de transformação, não pode hoje evitar a discussão sobre a perplexidade com que constatamos diariamente o avanço da brutalidade e da ignorância. E nos perguntamos o que causou tanto retrocesso nas ideias sobre comportamento e direitos humanos. O que levou à naturalização da afronta à ciência e ao pensamento? A tecnologia atualmente nos propicia acesso universal ao conhecimento mas, paradoxalmente, é na rede que circulam e se fortalecem os discursos achegados ao terraplanismo1. Como pensar em arte contemporânea nesse tempo? Como estabelecer critérios para o exercício da crítica de arte na era dos discursos horizontalizados, em que todos falam sobre tudo, e das campanhas difamatórias, às quais Byung-Chul Han se refere como Shitstorms?

Para o filósofo coreano-alemão, o Shitstorm, ou seja, o vociferar com indignação na rede, especialmente no sentido de deslegitimar ideias e agressivamente calar outras vozes, é o resultado da falta de distância. Quando não há distância entre as esferas do público e do privado, quando não há distância entre uma opinião desinformada e uma pesquisa científica, ou entre uma opinião moralista e uma crítica de arte, quando todos falam no mesmo nível horizontal, o respeito é destruído. E sem respeito, não há esfera pública, portanto não há democracia.

Este argumento de Byung-Chul Han, desenvolvido no livro “No Enxame: perspectivas do digital”, em alguns pontos remete à discussão de Walter Benjamin sobre a aura da obra de arte, decaída pela proximidade excessiva das coisas na era da reprodutibilidade técnica. As imagens reprodutíveis do cinema e da fotografia alteraram completamente a relação do espectador com a imagem, e Benjamin examina as possibilidades de emancipação de um cinema feito à imagem do proletariado, como em Eisenstein, e o risco da alienação e controle político da imagem produzida pela indústria capitalista cinematográfica. Este risco, que Benjamin percebe como favorecedor das estratégias fascistas de poder, poderia ser enfrentado pela politização da arte, que pressupõe devolver o “capital cinematográfico” ao proletariado, permitindo que o trabalhador se veja no filme, seja narrado, reconheça-se como classe. Benjamin já detectava a espoliação desse capital cinematográfico pela indústria do cinema dos anos 1930, que iludia o espectador com uma participação débil, reduzida ao culto à estrela de cinema.


Sob essas circunstâncias, a indústria cinematográfica possui todo o interesse em estimular a participação das massas por meio de representações ilusórias e especulações ambíguas. Com esse objetivo, mobilizou um poderoso aparato pubicitário: colocou a seu serviço a carreira e a vida amorosa dos astros, organizou plebiscitos, convocou concursos de beleza. Tudo isso para falsificar, por um caminho corrupto, o interesse originário e justificado das massas pelo cinema – um interesse de autoconhecimento e, com isso, de conhecimento de classe. Vale, portanto, em particular para o capital cinematográfico, o que, no geral, vale para o fascismo: que uma necessidade inegável por novas condições sociais é explorada secretamente no interesse de uma minoria de proprietários. A desapropriação do capital cinematográfico, assim, é uma exigência urgente do proletariado.2


Do culto à estrela de cinema passamos, hoje, à imitação das poses e gestos das celebridades, com a tecnologia das redes propiciando a circulação de selfies padronizados3. Vivemos a expropriação da subjetividade. Na rede, todos são imagens perfeitas, mas não sujeitos4. Não há como definir uma classe para essa junção de nós das redes, que Byung-Chul Han chama de ilhas narcisistas de egos.

O narcisismo tem algo de um refluxo, daquilo que não se dirige ao outro, mas circula reflexivamente. Pensemos então o que seria politizar a arte numa situação de funcionamento narcísico, em uma sociedade na qual as pessoas compreendem o mundo a partir da estrutura paradoxal da rede que interliga ilhas narcísicas. Ou ainda, o que podemos definir como prioritário para a arte contemporânea e para a crítica de arte contemporânea na era das redes?


2. A arte contemporânea e a arte atual

Em 1992, a filósofa francesa Anne Cauquelin propôs dois regimes de organização do sistema da arte: o regime do consumo, associado à arte moderna, e o regime da comunicação, característico da arte contemporânea. A arte moderna estaria vinculada a uma noção de produto: “É essa onipresença do consumo que rege a arte moderna, por excesso ou por falta, por adesão ou por recusa."5

A arte contemporânea, por sua vez, não pode ser compreendida na lógica do regime do consumo. Ela é parte do regime da comunicação, no qual toda a produção, inclusive a de arte, segue a lógica da circulação de informação. A arte contemporânea, para a filósofa francesa, é uma rede fechada e tautológica, que vive de si mesma, circulando sempre a mesma mensagem que é algo como “há uma rede e você está nela.”6

Nesse sistema, o conteúdo não importa, desde que o continente, ou seja, a rede, esteja em movimento. A arte contemporânea então não tem mais relação com qualidades próprias da obra e sim com a imagem do sistema da arte contemporânea que circula na rede. Esse circular de uma mensagem vazia, que vai e volta dentro do mesmo circuito, é totalmente avesso à ideia de crítica de arte, que tem como pressuposto a identificação da singularidade e o esforço para compreender a produção que desafia o pensamento já conhecido.

De fato, a circularidade vazia identificada por Cauquelin no regime da arte contemporânea coincide com a sensação de imobilidade que nos invade hoje, sensação de um presente estancado, sem o próximo instante. O tempo, que deságua de um instante a outro, encontrou uma barragem, e a água volta, nojenta. O futuro apresenta-se como impedido pelo refluxo, pela partícula reflexiva própria do narcisismo, um “future-se” de água parada malsã.

Mas viver requer alguma ideia de futuro, então, por absoluto instinto de sobrevivência, talvez devamos testar uma mudança na terminologia adotada por Cauquelin. Ao regime da circularidade vazia da rede, da mensagem tautológica que diz “existe a rede e eu estou nela”, chamemos de regime da arte atual, salvando o termo arte contemporânea para outra coisa.

A própria expressão “arte contemporânea” levanta um problema, já que todas as obras de arte são supostamente contemporâneas do tempo e da sociedade em que foram produzidas. A diferença entre arte atual e arte contemporânea aqui proposta torna-se mais clara quando percebemos que a obra de arte que impacta a história da humanidade, em geral, não foi devidamente apreciada em seu tempo e na sociedade em que foi produzida. O senso comum não gosta da arte que não lhe é familiar. Ora, um dos patógenos responsáveis pela água podre do tempo de refluxo é justamente o senso comum, a subjetividade moldada. A arte atual talvez seja apreciada pelo senso comum. A arte contemporânea, jamais, pois ela produz justamente a experiência de viver em desconforto com seu tempo.

Substituindo então a palavra “contemporâneo” por “atual” na teoria de Cauquelin, podemos chamar de arte atual o anúncio de evento nas redes. E a arte contemporânea? Fica preservada da circularidade vazia da rede pela definição de contemporâneo proposta por Giorgio Agamben:


Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo.7


O contemporâneo pressupõe, portanto, uma distância de seu tempo, uma inatualidade, uma desconexão com sua época. É aquilo que Agamben identifica no Nietzsche das Considerações Extemporâneas, quando o jovem filósofo se propõe a “entender como um mal, um inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se sente orgulhosa[...]”. O contemporâneo de Agamben é aquele que vive num presente do intempestivo. Mas certamente, a pessoa extemporânea ou contemporânea de seu tempo não é um retrógrado, saudosista ou nostálgico do passado. Tampouco está à frente de seu tempo, expressão frequentemente usada para qualificar grandes artistas mas que, obviamente, não faz nenhum sentido, pois pressupõe que a linha do tempo já está dada de antemão e que o gênio coloca-se alguns centímetros mais à frente do que as outras pessoas. O extemporâneo não tem nada desse gênio do senso comum, nem compactua com o senso comum de que o futuro já está traçado. O extemporâneo está cravado em seu tempo, mas desconfortável com ele, não aderido a ele: “um homem inteligente pode odiar seu tempo mas sabe que irrevogavelmente lhe pertence, sabe que não pode fugir dele.”8

O contemporâneo está instalado na coluna vertebral quebrada de seu tempo, vivendo assim um presente subjetivo. Ele quebrou as vértebras da sua época, cravou-se na ferida, e é aquele que, com seu sangue, fará a sutura, soldando “o dorso quebrado do tempo.”9 O tempo daquele que é contemporâneo, portanto, não é o tempo cronológico: em todas as épocas houve o contemporâneo.


A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.10


3. Ver no escuro do seu tempo

Traduzidas para um termo mais próximo da arte brasileira, a extemporaneidade de Nietzsche e a contemporaneidade de Agamben são afins à marginalidade de Hélio Oiticica. Ser marginal é ser herói porque é ser singularmente avesso a tudo o que é familiar ou motivo de orgulho de uma sociedade. É contemporâneo aquele que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro.”11

Este escuro que o contemporâneo mira é uma parte íntima da época, que o excesso de luz não permite ver. O contemporâneo tem a habilidade de ver no escuro. E esse escuro interpela-o. É o que o intriga.

O que é este escuro? Agamben explica-o pela metáfora do céu estrelado12. Entre as estrelas, há o escuro. Ora, mas há no universo infinito uma quantidade infinita de galáxias cheias de estrelas. Por que não vemos tudo claro no céu à noite? Por que vemos o escuro do céu? Sabemos que a luz que vemos das estrelas é a luz emitida no passado, e que viajou até nós, na velocidade da luz. Há infinitas estrelas no infinito universo, então não deveria o céu ser um clarão, sem escuro entre as estrelas? Agamben supõe que a luz de algumas estrelas não chega a nós porque elas estão em galáxias que se afastam de nós em velocidade maior do que a da luz. A luz dessas estrelas então nunca nos alcançará. É uma luz que está vindo, mas ao mesmo tempo a galáxia está se distanciando. Daí Agamben dizer que a pessoa contemporânea se interessa por esse escuro, porque sabe que lá há algo que falta, que está vindo, mas que não chega.

Assim, o contemporâneo de Agamben mira o escuro da sua época, descola-se do que está fácil de ver, reconhece a luz que não chega e, como os contemporâneos de todas as épocas, escapa do que o senso comum mais preza, desvia da conformação da subjetividade.

4. A subjetividade na arte brasileira contemporânea

Na arte brasileira, o interesse pelos processos de subjetivação e a questão do descondicionamento do comportamento são exemplarmente representados pela produção de Hélio Oiticica e de Lygia Clark. Ambos chegaram à questão da subjetividade desenvolvendo os pressupostos do Neoconcretismo. O manifesto neoconcreto de 1959 apresenta a concepção da obra de arte “como um quasi-corpus, um ser”13, de forma que seria preciso abandonar a ideia de obra de arte como ontologicamente pertencente à categoria dos objetos ou das máquinas, e aproximá-la da categoria dos organismos vivos. Ao defender uma obra de arte próxima a um organismo vivo, o manifesto propicia o surgimento de obras de arte que interagem com outros organismos vivos, ou seja, obras de arte participativas, que convocam o corpo do espectador a agir ética e politicamente. É dessa discussão entre o objeto e o organismo vivo proposta pelo Neoconcretismo que compreendemos a origem das experiências com o descondicionamento do corpo, que estabeleceram um nexo entre a vida e a obra de arte pelo encantamento artístico dos gestos corriqueiros. Ou para usar a frase do crítico Mario Pedrosa, já citada à exaustão, o entendimento de arte e de vida como exercício experimental da liberdade.

Mario Pedrosa identifica o estreito relacionamento entre a nova concepção de arte, que desponta no final dos anos 1960, e a mudança dos modos de produção em geral, no âmbito da arte e fora dele:


Eles [os artistas] se entregam, consciente ou inconscientemente, a uma operação inteiramente inédita com esse caráter extrovertido de massa nas sociedades burguesas ou nas sociedades em geral: o exercício, mas o exercício experimental da liberdade. E a primeira consequência disto é não criar para o mercado capitalista, é não criar para que tudo se metamorfoseie em valor de troca, isto é, em mercadoria. Não fazem obras perenes, mas antes propõem atos, gestos, ações coletivas, movimentos no plano da atividade-criatividade. É possível que muitos desses artistas sonhem ou já se inspirem numa manifestação utópica (os artistas são sempre antecipadores do devenir histórico) de uma sociedade em que o homem não trabalhe mais para ganhar a vida com o suor de seu rosto, para que pelo trabalho e pelo lazer, sem mais diferenças entre um e outro, aprenda a viver (o artista já é o único ser para quem, hoje mesmo, o lazer não é uma ociosa ausência de trabalho, como na concepção burguesa).14


Pedrosa escreve a partir da concepção marxista de que o poder opressor do capitalismo exerce-se no controle do tempo de trabalho e defende a arte que anuncia a possibilidade de libertação do trabalhador, em um futuro utópico, quando cada um será dono de suas horas de trabalho e de lazer. Este futuro ou “devenir histórico” dos conceitos de trabalho e lazer de que nos fala Mario Pedrosa é o cerne da proposta de Crelazer de Hélio Oiticica, que é ao mesmo tempo conceito filosófico e proposta artística centrada no comportamento estético-político, em vivências lúdicas, introspectivas e descondicionantes no sentido de permitir a cada um tomar posse do seu tempo de lazer, livrar-se do lazer condicionado imposto pela sociedade do espetáculo, inventar a própria vida, como quem inventa uma obra de arte.

É interessante pensar a posição do contemporâneo segundo Agamben, olhando para o escuro entre as estrelas, e assim tomando distância de seu tempo, e a ideia de Oiticica de pertencer a uma galáxia de inventores, de pontos de luz15. Ao explicar o conceito de invenção, Oiticica coloca-se no mesmo presente contemporâneo de outros inventores.


Mondrian, para mim, é um desses pontos luminosos... na realidade tem pontos e pontos luminosos... A tendência é só haver pontos luminosos, não interessa mais o artista de média, o artista que media, o artista não inventor não interessa mais, então para mim só interessa pontos luminosos: os artistas que são grandes inventores. 16


O texto de Agamben nos leva a pensar na possibilidade de pontos luminosos que estão no escuro, entre as estrelas, ou seja, que estão sempre vindo mas nunca nos alcançam, e com os quais o contemporâneo marca um compromisso: “chegar pontualmente a um compromisso ao qual se pode apenas faltar”. O contemporâneo tem o compromisso de estar na fratura do tempo (“o presente que a contemporaneidade percebe tem as vértebras quebradas”), vivendo um tempo subjetivo anacrônico, que é "muito cedo" (a luz do escuro ainda não chegou) e é também "muito tarde” (a luz do escuro já se afastou), um "ainda não” que é, também, um um "já", em estranheza e desconforto com as luzes do próprio tempo. A vivência anacrônica do contemporâneo, que vivencia o tempo como um ainda não chegou mas que já foi, está urgindo dentro do tempo cronológico, transformando-o.17 A anacronia do contemporâneo diz respeito também à sua relação com um passado arcaico, de origem, que é contemporâneo do presente e do devir histórico, como a criança continua a operar na vida psíquica do adulto. O contemporânea percebe, no presente, os traços do arcaico.18

Na história da arte brasileira, podemos entender a qualidade do tempo do contemporâneo pela expressão de Oiticica “singultaneidade”, que é a simultaneidade das singularidades, o novo que permanece novo, o retorno do que avança. É importante ressaltar que o retorno do que avança não é refluxo. Ao contrário, é transformação, pois é o retorno da singularidade produtora de invenções,19 o “já” que é também “ainda não”, como essa luz que o contemporâneo vê nas trevas, e que mantém seu processo de subjetivação sempre vindo, sendo inventado, nunca se concluindo, a não ser com a morte, que só ocorre quando há o estancamento da subjetivação.

Há uma profunda conexão entre a experiência de tempo daquele que, segundo Agamben, é contemporâneo e o “estado de invenção”, que se torna o motor da obra de Oiticica nos anos 1970, conforme escrito com os neologismos característicos do artista carioca: “MEU SONHO é q COSMOCOCA a cada fragmento se modifica e acaba por formar como q uma GALÁXIA de INVENÇÃO de manifestações individuais poderosas: LUZ q intensifica: mais luz”20

Em 1978, um pouco antes de sua morte prematura, Oiticica falou sobre arte como o resultado de um processo contínuo, quotidiano, interminável, o dia-a-dia como obra de arte. O que é o dia-a-dia senão o presente? “[Q]uer dizer, o próprio dia-a- dia, para mim, é a construção de uma obra, o dia completo é a obra. Como também não existe mais o movimento de vanguarda: cada dia, o dia-a-dia, é a vanguarda, entende?”21

O termo bélico “vanguarda" diz respeito ao pelotão que num exército abre caminhos, vai na frente, o que não faz mais sentido hoje, quando as guerras são travadas em rede (redes terroristas, ativismo pela internet, Shitstorm, fake news, algorítmos detectores de indivíduos persuasíveis, algoritmos definidores das notícias que cada pessoa lê, etc). O controle da subjetividade não é mais exercido pela opressão do trabalhador. O controle é pervasivo, está em cada clique e em cada movimento que fazemos na rede.


5. Dispositivo, anti-dispositivo

O “devenir histórico” anunciado por artistas dos anos 1960, na leitura do crítico Mario Pedrosa, seria a mescla digna e indiscernível entre tempo de trabalho e de lazer. A questão para a arte contemporânea de 2019 é outra, porque nossa sociedade não funciona mais no modelo industrial do capitalismo e, ao mesmo tempo, é a mesma, porque diz respeito à libertação dos processos de subjetivação. É outra porque aquilo que oprime o comportamento não vem mais do tempo de trabalho e do lazer alienado, e sim do tempo em rede, que embota os processos de subjetivação. A rede é o dispositivo que parou o tempo da transformação e parou os processos de subjetivação.

Para Agamben, um dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”22. O sujeito é “o que resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos.”

A Internet e especificamente as redes sociais capturam, orientam, determinam, interceptam, modelam, controlam e asseguram os gestos, as condutas, as opiniões e discursos e assim são determinantes para a derrocada da democracia, para a perda do respeito e portanto da esfera pública, pelo indiscernimento entre real e ilusório, entre o verdadeiro e o falso, e não só pela captura dos processos de subjetivação como pelo processo de auto-objetificação em rede23.

Podemos então concluir que a diferença entre a crítica de arte atual e a crítica de arte contemporânea está na diferença entre reforçar os dispositivos ou profaná-los. A crítica de arte atual descreve, anuncia, elogia, promove um evento artístico ou uma obra de arte que gira em refluxo na rede, reforçando o dispositivo. A crítica de arte contemporânea identifica e é uma forma de arte que profana os dispositivos, atuando para libertar as subjetividades. Continua valendo a análise de Hélio Oiticica: “crítico ou é da posição de artista ou não é (...) Voyeurs da arte! Pior que a pior das inutilidades.24

O que seriam essas produções que contra-atuam o dispositivo da Internet? Segundo Agamben, “não se trata simplesmente de destruir os dispositivos nem, como sugerem alguns ingênuos, de usá-los de modo correto.”25

A sensação de refluxo do tempo que temos vivenciado nas redes sociais tem a morbidade da repetição pois sinaliza uma paralisação dos processos de subjetivação. Contra a compulsão à repetição e à conservação é preciso inventar signos que possam inscrever a transformação em uma narrativa temporal. O refluxo da circulação vazia na rede impede a invenção de representações, de palavras, e mata o processo de formação do sujeito.

Então, voltando à pergunta, o que seriam essas produções que contra-atuam o dispositivo da Internet? Podemos deixar essa questão em suspenso, o que causaria um pouco de angústia, lembrando que a angústia não é totalmente ruim, porque impele à movimentação. Ou, podemos arriscar alguns pensamentos sobre o que seria uma arte contra-dispositiva, propiciadora de processos de subjetivação hoje, desde que esses pensamentos não sejam tomados como prescritivos, porque o excesso de sentido também é mortífero. É isso que a rede faz: provê um excesso de soluções e de sentido. Então, sem a intenção da prescrição pode-se considerar que atuam como contra-dispositivos na arte contemporânea:


1. Produções que inventam a linguagem para expressar a narrativa do passado, como em produções que fornecem a palavra para registrar a memória da escravidão, da ditadura, da opressão de minorias, ou seja, produções que constituem a história da sociedade. Sem a história, o indivíduo fica mais disponível às promessas de vida eterna da rede, na forma de imagem de perfil, passa a acreditar na promessa de espaço horizontal para a expressão da indignação agressiva – que como argumenta Byung-Chul Han, “não é cantável”, já que não produz narrativa e nem ação26 – , vive da promessa de reconhecimento por likes e emojis de aplausos.27 A história e seus marcos são antídotos à tendência à repetição, à conservação e ao refluxo pois o conhecimento do passado permite o desenvolvimento da noção de finitude, de transformação, de futuro, de alteridade, afinal o passado é sempre um país estrangeiro.28


2. Produções que inventam a linguagem para expressar o mal-estar contemporâneo, como em obras distópicas que, desde o século XIX existiram na literatura, apareceram no cinema desde suas origens29, e que nas produções mais recentes tratam de um futuro muito próximo, que assustadoramente se anuncia para daqui a pouco30. Combatem assim a promessa de felicidade plena e de auto-suficiência narcísica do dispositivo neoliberal.


3. Produções que propõem vivências não-fotogênicas31 – e assim não circuláveis como imagem nas redes sociais – relacionadas à materialidade, religando o corpo, que atualmente se entende como imagem, à experiência sensorial.


Esses três possíveis caminhos para a arte restauradora dos processos de subjetivação baseiam-se no combate à auto-imagem narcísica que o indivíduo constroi na rede, seja imagem em fotos relacionadas a si, seja imagem de si em posts de indignação32. A imagem perdura, circula na rede num tempo do refluxo, jamais desaparece, é excessivamente iluminada, conectada, acessível, muito próxima. Precisamos da noção de distância (e assim da noção de passado e de respeito33) para podermos pensar em futuro, olhando, como contemporâneos do nosso tempo, para as trevas que indicam uma luz que nunca nos alcançará. Essa distância permite o descolar-se daquilo de que a época mais se orgulha e a vivência do presente do intempestivo. Enfim, é preciso buscar a arte que não seja refluxo de imagens e, novamente citando o ensaio de Agamben, escrever a crítica de arte contemporânea “mergulhando a pena nas trevas de seu tempo“.


Paula Braga, 2019.


1Segundo reportagem de 14/07/2019 de A Folha de S. Paulo, uma pesquisa feita em 2019 concluiu que 7% dos brasileiros (cerca de 11 milhões de pessoas com mais de 16 anos) acreditam que a terra é plana. A crença cresce em redes sociais. cf. https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/07/7-dos-brasileiros-afirmam-que-terra-e-plana-mostra-pesquisa.shtml. Acessado em 18/09/2019.


2Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. (trad.)Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Al.egre, RS: Zouk, 2012


3cf. Selfiecity.net. Acessado em 18/09/2019.


4cf. Achille Mbembe. Technologies of Happiness in the age of animism. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=nIijTCn8Gh4. Acessado em 19/09/2019.


5Anne Cauquelin, Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 27-28.


6Ibid., p. 60-61, 79.


7 Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. (trad.) Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argus, 2009, p. 58-59.


8 Ibid., p.59


9Ibid., p.60


10Ibid., p. 59


11Ibid., p. 62


12Apesar do envolvente sentido poético da explicação de Agamben, é importante ressaltar que há premissas cientificamente erradas na explicação do filósofo sobre o escuro do céu.


13GULLAR, F. “Manifesto Neoconcreto” in Projeto Construtivo Brasileiro na Arte. Amaral, A. (org.) Rio de Janeiro, MAM; São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977.


14Mario Pedrosa, “A bienal de cá para lá” em Política das Artes. Otília Arantes (org.) São Paulo: EDUSP, 1995. Texto de 1970, originalmente publicado em Gullar, Ferreira, Arte Brasileira, hoje. (Rio de Janeiro: Paz e Terra), 1973.


15Discutimos a galáxia de inventores de Hélio Oiticica em Braga, Paula. Hélio Oiticica: singularidade, multiplicidade. São Paulo: Perspectiva, 2013.


16 OITICICA, Hélio. Áudio da entrevista a Ivan Cardoso, 1979. Na transcrição dessa entrevista publicada em Ivampirismo: o cinema em pânico, op. cit. não há verbo nessa frase e lê-se “o artista que média”. No áudio fica claro que Oiticica está conjugando o verbo mediar: “o artista que media”.


17Agamben, op. cit., p. 65-66.


18Agamben, op. cit., p. 69.


19cf. “O retorno do que avança” em Braga, Paula, op. cit., p.53.


20OITICICA, Hélio. “Vendo um filme de Hitchcock, ´Under Capricorn´”, 31/03/1974 Programa Hélio Oiticica 0318/74 – 15/24 disponível em https://www.itaucultural.org.br/programaho/. Acessado em 18/09/2019.


21Hélio Oiticica em entrevista a Jary Cardoso. “Um mito vadio". Folhetim, 5 nov. 1978. Arquivo Hélio Oiticica 944.78


22Agamben, Giorgio. O amigo e O que é um dispositivo?. Chapecó, SC: Argos, 2014, p. 39.


23cf. Braga, Paula. O lago de narciso: a auto-objetificação na fotografia contemporânea. Anais do XXXVIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Arte e Erotismo: prazer e transgressão na história da arte, Florianópolis-SC 16-20 de outubro de 2018 /Organização: Luiz Freire, Tamara Quirico, Arthur Valle e Marco Pasqualini de Andrade - Florianópolis: Comitê Brasileiro de História da Arte - CBHA, 2019 [2018]., pp. 590-598. Disponível em http://www.cbha.art.br/coloquios/2018/anais/2018_anais_cbha.pdf. Acessado em 10/12/2019.


24 CLARK, Lygia e OITICICA, Hélio. Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74, op.cit., p. 229 (carta de 11/07/1974).


25Agamben, “O que é o dispositivo”, op. cit. p. 41


26Byung-Chul Han No Enxame: perspectivas do digital. (trad.) Leda Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. p.23


27Sobre a questão do reconhecimento nas redes sociais e consequências para a democracia, cf. Paulo Arantes, Entrevista à Tutameia TV. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FNqGWOiphU8. Acessado em 17/09/2019.


28cf. David Lowenthal. The Past is a Foreign Country. Cambridge, UK: Cambridge University press, 1985.


29cf. "Variedades de Distopia: totalitarismo e pós-totalitarismo na sátira e na realidade” e “Utopia, Ficção Científica e Cinema: a fronteira final” in Gregory Claeys, Utopia: a história de uma ideia. São Paulo: Edições SESC SP, 2013.


30cf. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau, 132’, 2019.


31Obras como Magic Square #5 de Hélio Oiticica, instalada em Inhotim, ou de Ernesto Neto, recentemente expostas na Pinacoteca de SP, atestam a rápida diluição da experiência em imagem para redes sociais.


32cf. Byung-Chil Han, No Enxame, op. cit., p. 21-34.


33Ibid., p.11-20.

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