Um texto de 2010, que fez sentido hoje, sobre obras de Victor Lema Riqué.
Compactos como bunkers, os edifícios da série El Bosque 2 de Victor Lema Riqué oferecem trampolins para um salto no vazio. Alguns têm janelas fechadas e pórticos que emolduram portas lacradas com concreto. Ninguém sai, ninguém entra. Presume-se que estejam habitados. Se há alguém dentro deles, conhece o mundo exterior?
A narrativa em forma de conto, gênero ao qual Riqué dedica-se em paralelo ao desenvolvimento dos trabalhos plásticos, começa a se impor como necessidade para quem observa esses grandes desenhos a carvão sobre tinta acrílica. Se há habitantes nesses prédios invioláveis, tentam sair? Por que esse nada escuro do lado de fora? É o medo que os mantêm encerrados. Não. Pode ser que estejam fechados à força. Ou simplesmente sempre estiveram presos, nem sabem que existe outra possibilidade.
No conto “O Despovoador”, Samuel Beckett descreve o que poderia se passar no interior dessas arquiteturas de Riqué: sem qualquer perspectiva, pessoas vagam dentro de um cilindro, ou ficam prostradas, ou tentam atingir túneis cujas aberturas estão no alto, mesmo sabendo que os túneis levam a lugar nenhum. Nenhuma interação entre eles, a não ser a violenta disputa por um canto para se isolar.
Beckett descreve em detalhes o cotidiano do lado de dentro de um bloco inviolável. Riqué olha esse tipo de arquitetura pelo lado de fora, que também é lugar nenhum, escuro. O bosque do título da série não pode estar dentro dessas construções opressoras, sempre em cor cinza ou sépia. São prédios de outra época? São perenes? Estão dentro de mim? Receio que possam ser a minha mente: blocos fechados de memórias, cantos escuros, e a chance para o salto se eu conseguir sair de mim. Só alcançarei o bosque se me jogar no vazio a partir de um dos trampolins. Abrir os olhos, sair do escuro, juntar-me ao outro no mundo exterior compartilhado. Perceber que o vazio termina na fronteira da minha pele. O mundo é povoado dali para fora.
Tema recorrente na obra de Riqué, a dificuldade de comunicação com o outro tem o peso dessas arquiteturas invulneráveis. “Eu disse bom dia e o vizinho não respondeu” diz o lambe-lambe que o artista espalhou pela cidade de São Paulo em 2005 e que traduziu para alemão para colocá-lo nas ruas de Berlim em 2006, por ocasião da exposição El Bosque 1. Esse interesse pela comunicação levou-o a trabalhar em conjunto com outros artistas e a utilizar diversas mídias para cada obra. Cada série acontece em desenhos, vídeos e contos. Os carvões de El Bosque 2 foram feitos ao mesmo tempo em que Riqué escrevia “A camisa branca que um dia foi azul”, narrativa que se passa simultaneamente dentro de um apartamento e na amplidão de um deserto: navegando virtualmente pelo Google Earth, um homem monitora um deserto, e vê, em tempo real, outro homem, perdido entre as dunas. Grita, quer falar-lhe. Não consegue. Distrai-se e cai no deserto de sua própria mente. Esquece o outro. Relembra-o. Perdeu-o. Desespera-se. Talvez as construções pesadas e intransponíveis dos desenhos de El Bosque 2 encerrem um deserto.
A exposição traz ainda o vídeo Siempre hay una cama y una ventana, no qual Riqué filma uma personagem feminina que se agita numa cama, quer desprender-se da loucura, escapar. A mesma atriz desse filme, Ondina Castilho, divide com Victor Leme Riqué o plano sequência do filme Toilette, no qual ambos lavam o rosto obsessivamente, esfregam-no com água, enxugam com papel, recomeçam.
Escapar de si, escapar das relações obsessivas que na verdade apagam o outro, mergulhar no coletivo. Respira-se finalmente com o filme The Draft, esse sim um bosque fresco e delicado, colorido, festivo. Um grupo de pessoas escapou da loucura da individualidade enclausurante e celebram, juntas, o salto do trampolim.
Da mesma forma como se pode ler essa exposição a partir da perspectiva de uma mente encerrada em seus traumas, lembranças e a possibilidade de transcender-se, creio que podemos lê-la substituindo pessoa por história. Ondina Castilho vestida de branco a revirar-se em pesadelos e dores na cama pode ser uma alegoria para humanidade: as loucuras históricas, os bunkers, os regimes totalitários, a devastação, o nada, o caminhar em círculos dentro de um cilindro sem conseguir sair do deserto para o bosque. E o rascunho (the draft) da possibilidade de frescor de uma ética coletiva.
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