Parece muito simples olhar para uma tela e pensar que se vê representações de maçãs. No entanto, não são maçãs. O que Danillo Villa pinta há 15 anos, em dezenas de versões, aproxima-se mais da categoria de objetos internos, como se fossem entes psíquicos que constituem o que somos ao se entregarem, como personagens, para nossas fantasias. O mundo exterior, então, constitui-se a partir das interações que coreografamos para os objetos internos, que possuirão seus duplos no mundo compartilhado. Como representar esses objetos internos? Pode ser com a forma de maçãs. Ou qualquer outra forma, como garrafas, por exemplo aquelas usadas por Morandi para tratar das interrelações entre objetos. Deveria ser bastante óbvio que Morandi não se interessava tanto pelas relações entre a garrafa mais alta e a garrafa azulada, e sim pelas relações em geral, constitutivas da tela que se vai pintando, assim como, nas teorias psicanalíticas herdeiras do pensamento de Melaine Klein, as interrelações entre objetos internos constituem aquilo em que vamos nos tornando.
Vamos sendo, vamos nos tornando, sempre no gerúndio, o que explica a insistência de Danillo Villa em continuar pintando maçãs, dia após dia, durante tantos anos, como que interrogando em cada tela um por quê. Nos anos 1990, o livro de Gerard Richter The Daily Practice of Painting prometia, pelo título, ser um diário íntimo de um pintor, mas era um bom volume de ensaios e entrevistas com nome cativante, justamente porque é isso que urge responder: como é a prática diária de um pintor? Por que ele pinta? Villa pinta para se constituir. Não há mensagem, não há espetáculo, só há o traçado diário do pincel na tela e o resultado, que é o único possível, de entrosamento ou aversão entre os objetos, de aproximação e distanciamento, em um campo duplo e paralelo ao campo das interdependências das coisas do comum. Assim, as telas de Villa acolhem contornos e sombras de maçãs que o artista considera ocas, talvez para que, vazias, possam comportar projeções e identificações, ataques e reparações, amor, ódio, medo e gratidão, de acordo com o dia, de acordo com o que elas também vão sendo. Ou seja, elas não representam o que já está ocorrendo no mundo comum compartilhado. O processo é outro. À medida em que elas aparecem na tela (que equivale a um aparelho psíquico), à medida em que as maçãs (objetos internos) se constituem, o mundo fora também vai acontecendo.
Distanciado da mímese, Villa interessa-se muito mais por modos de fazer constitutivos daquilo que Jacques Rancière conceituou como regime estético, no qual a identificação do que é arte não depende de uma técnica como a pintura ou a fotografia, e sim de uma maneira de incomodar consensos. No regime estético, a arte é aquilo que nos dá a sentir o mundo de forma a percebermos o que antes não era percebido. Não se trata de mostrar uma maçã diferente, nem de abrir os sentidos para que abarquem mais do mundo. Trata-se de alterar o campo das coisas que podem ser percebidas, ou seja, alterar o comum compartilhado. Tanto melhor se Villa o faz com a pintura, que por séculos apenas imitou o que já estava dado, quebrando o pressuposto da representação. Maçãs, maçãs, maçãs, e temos que nos entender com essa recusa da pintura como duplo mimético do mundo. Se é para ser duplo do mundo, será um duplo indiferente ao que vemos e tocamos, um duplo que nasce em simultaneidade àquilo que duplica, e assim, pela prática da pintura, perturba a própria concepção de prática da vida.
Assim, percebe-se a pertinência do boneco de madeira que Villa apresenta em sua produção como de alguma forma relacionado às maçãs. Ora, o boneco é Pinóquio, o ingênuo que mente até para si mesmo, supondo que poderá viver descomplicadamente. Ele só será humano quando compreender que precisa constituir-se enquanto, simultaneamente, constitui relações internas e externas com os outros. Existir exige a negatividade incômoda e sofrida. Assim como o boneco de madeira, outras produções de Danillo Villa, especialmente instalações e intervenções urbanas, reafirmam experiências tão básicas quanto complexas, como o amor, a mentira, as intenções e as limitações que, ainda assim, são potentes no processo de auto-constituição.
No embate com os pequenos fracassos inerentes às práticas da vida e da pintura, as maçãs sempre retornam com a quietude própria à bem-sucedida integração de simplicidade e impenetrabilidade. Elas nunca estão cortadas, sempre aparecem inteiras. Podem estar aos pares, sozinhas, em pequenos grupos, encostarem-se ou quase saírem do enquadramento da moldura. Não importa. Silenciosas, elas vão acontecendo tela após tela para interromper a ideia consensual de que o mundo já está dado. Nós é que definimos o que será compreendido como sendo parte do mundo. E isso requer muito silêncio, para que sejam escutadas as presenças e relações entre as coisas, internas e externas, que Danillo Villa embrulha em casca de maçã.
Paula Braga, 2021.
Todas as pinturas em acrílica sobre tela e a escultura em madeira são de Danillo Villa. As obras foram fotografadas por Eduardo Haguio.
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