Como se tivessem emergido do fundo da água, malas e baús ocupam o átrio do prédio dos correios. Se apareceram por lá, é porque precisam chegar a um destinatário. Flávia Renault notou-os quando começaram a surgir na superfície do pensamento brasileiro e organizou-os em um arquipélago de engradados de madeira. A exposição desses achados endereça detritos da história brasileira à reparação.
Em algumas malas há ossos; em outras, o fungo cresceu no escuro durante décadas lacrimejantes; nos baús, documentos infernizam com um estranho inventário de posse de pessoas, retratos familiares, volutas barrocas douradas tão atraentes quanto carregadas de culpa. Primeiro, a artista colocou tudo no sol, mexeu em bacilos adormecidos, abateu-se com o contato doloroso com o passado e, deitada embaixo da nuvem de poeira, entendeu a reaparição recente dos ossos nas filas famintas. Depois, fortaleceu-se ao achar a gratidão nos ex-votos e a resistência no sincretismo religioso.
Tanto a dor quanto a força embalam a arte de Flávia Renault. O verbo aqui escolhido é preciso: a artista termina uma performance encolhida dentro de um baú, embalando-se com uma cantiga, acalmando-se diante do terrorifico e simultaneamente embala a carga pesada para ser enviada ao mundo. É coisa demais para ter dentro de si, e o mundo há de ser confiável como parceiro de reparação de muitos horrores. Nas malas do arquipélago montado no prédio dos correios há livros de história e, se é possível narrar, é possível pensar sobre os traumas de uma sociedade que vira e mexe recai nos mesmos erros. Ainda é tudo muito presente e repetitivo.
Entranhas, gavetas, capas de livros, fendas e suturas são os interesses de uma artista que já tentou entender o Brasil percorrendo rodovias, mas que agora tenta acessá-lo internamente, remexendo na herança social que nós carregamos. O tempo e a disponibilidade psíquica que a tarefa exige é o tema da performance que acompanha a exposição Arquipélago. A artista costura no próprio vestido galhos de uma árvore seca, como se, bordando o passado em si mesma, insuflasse-lhe um ânimo novo. Ou será justamente o inverso? É na força do que resistiu que Flavia Renault busca energia para o que vem. Abrir as arcas velhas e ver as entranhas do Brasil ajuda a olhar com sinceridade o conteúdo das nossas bolsas. Que venha tudo à superfície para vermos que uma das malas está cheia de ninhos de pássaros.
Paula Braga, 2023
Comments