Passeando pela exposição de Amélia Toledo no MUBE em 2024, lembrei desse texto de 2008.
Amélia Toledo, Parque das cores do escuro, Ibirapuera, São Paulo, 2002
Amélia Toledo me explicou que o gesto acontece como conseqüência da respiração. Alimentado de ar, o gesto nasce abaixo do umbigo e se estende como onda até chegar na mão. Da mão, essa energia se corporifica em linha que marca o ar quando dança, o papel quando desenha, a pedra quando esculpe.
A artista vive cercada de quartzos, granitos, ametistas, malaquitas, hematitas, algumas de tamanho impressionante. São pedras de estimação nas quais, ao longo de anos de convívio, ela percebe transformações, mudanças sutis de cor. A forma de algumas delas advém do gesto da água. São “pedras-bichos” que descansam no chão ou se oferecem como bancos para serem acariciados por nossos corpos.
As conchas que Amélia Toledo coleciona, assim como as pedras coloridas que a artista manda retirar da entranha da Terra, também têm linhas formadas pelo gesto da água. O mistério que essa obra propõe é encontrar os umbigos, vórtices de energia vital, que se desdobram nesses desenhos da natureza. O mar é vivo? A Terra é viva?
Ao mesmo tempo em que Amélia Toledo acumulava conchas catadas nas praias do Rio de Janeiro, James Lovelock publicava a Teoria de Gaia (1969), que propõe que o planeta Terra seja um ser vivo. Tudo que existe na Terra são células desse ser, seja um pedaço de quartzo rosa, seja um animal. Quando manda buscar nas pedreiras essas células duras para oferecê-las polidas ao público, a artista expõe células de Gaia.
Na adolescência, Amélia Toledo especializou-se em cortes histológicos de tecido animal, preparando lâminas laboratoriais para os estudos científicos de seu pai. Talvez daí venha a dedicação da artista em nos oferecer lâminas com cortes histológicos do planeta, que demonstram que a Terra é preciosa, encrustada de jóias gigantes. Nos parques de pedras, desfrutamos do silêncio solene desses seres até amolecermos para um novo modelo de mundo: sim, talvez o mar seja vivo, talvez a Terra seja um organismo vivo. É essa a magia das pedras de Amélia Toledo, transformar nossa compreensão sobre a Terra, e assim nossa relação com o planeta.
Uma singularidade da arte feita no Brasil no final dos anos 1960 é um comprometimento político baseado na proposição de obras que incitam mudanças subjetivas. O Tropicalismo, assim como a produção de muitos artistas que preferiram não se alinhar a um “movimento tropicalista”, buscou abalar a estrutura da canção, das roupas, do poema, e reverberar esse tremor na estrutura do pensamento e do comportamento.
Amélia Toledo é parte dessa geração de artistas brasileiros que identificou o poder transgressor do amálgama entre ética e estética. Um termo inventado por Hélio Oiticica para designar essa estratégia de criação artística encaixa-se com perfeição à obra de Amélia Toledo: um “trabalho subterrâneo”, que silenciosamente abalas as estruturas habituais de comportamento e propõe o novo. Daí decorrem as verdadeiras transformações.
Quando desenterra do subterrâneo pedras de cores e desenhos preciosos, Amélia Toledo nos revela o “divino e maravilhoso” que a mudança de hábitos de pensamento suscita. Com pedras e curvas em aço inox, Amélia Toledo projeta jardins que suspendem o tempo quotidiano. Estar, intransitivamente, num ambiente desses já implica uma participação sutil, um desgarrar-se do comportamento ordinário. Os jardins de Amélia propõem aquilo que Hélio Oiticica definiu como “crelazer”, um ambiente propício ao lazer descondicionado.
A participação do espectador, tanto na obra de Amélia Toledo quanto em Hélio Oiticica, Lygia Pape ou Lygia Clark, é o cerne da possibilidade de transformação. A participação, nessas obras, não está em interações automáticas, em apertar botões ou responder a estímulos mas, ao contrário, em entregar-se a um ambiente, a um penetrável, a um jardim. A pedra é aqui misturada com o aço inox, curvado, que delimita um abrigo para estar, unindo o arquétipo da pedra como força da natureza com a alta tecnologia. Porque, a despeito dos avanços da civilização, ainda somos células de Gaia.
Assim como outros artistas que investigaram a confluência da ética com a estética, Amélia Toledo desenvolveu obras que exploram o psicodélico como possibilidade de expansão da consciência. Em Medusa (1969) ou em A onda (1969) o psicodélico abre-nos para a possibilidade de vivenciar o mundo em uma freqüência não-quotidiana. Psicodélico e lúdico encontram-se em várias proposições de Amélia Toledo. Brincar, afinal, é explorar novas possibilidade, papéis, movimentos.
Quando pinta com tinta acrílica bem diluída em água, Amélia gesticula em stacatto, salpicando a tela com camadas e camadas de energia transparente que resultam em campos de cor vibrantes. Suas aquarelas acumulam no papel a relação da artista com a paisagem, a caligrafia e a energia do gesto.
Mais recentemente, o gesto da artista diante da tela de juta ou linho vem desenhando continuamente um vórtice que, como uma pedra, muda de cor com a incidência da luz. O gesto como sempre vem da respiração que nasce no umbigo e, quase figurativamente, objectifica-se em um desenho espiralado. O resultado é uma pintura aparentemente monocromática, mas cheia de nuances de cor, solene, silenciosa e reconfortante como uma mãe, como a Terra. São seres?
A obra de Amélia Toledo, nos últimos 40 anos, acionou o que de melhor a vanguarda artística brasileira dos anos 1960 inventou: o lúdico, a participação, a junção da ética com a estética. E ainda hoje, continua a escavar a terra e a chacoalhar o mundo.
Paula Braga
setembro/2008
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