Tiago Mestre - instalação na Casa de Cultura do Parque
Sinto que me torno outra, logo eu era. A percepção de Deleuze sobre a existência tem uma incerteza dinâmica que contrasta com a arrogância cartesiana do “penso, logo sou”. Descartes se propôs a duvidar da existência de tudo, e concluiu que, nessa dúvida radical, sobra algo que duvida, e que, portanto, existe: o eu. Dois séculos depois, a ironia de Nietzsche indicou que Descartes confundiu uma questão existencial com uma questão gramatical. De fato, o verbo duvidar exige um sujeito, mas isso é pouco para fincar a certeza de um “eu que pensa”. Ainda mais, continua Nietzsche, porque o pensamento vem quando ele quer e não quando um “eu” quer. Eu é ficção que nos impede de perceber o dinamismo do que somos. Em cada instante, somos o amálgama do que fomos nos instantes anteriores. A certeza possível é de que eu era, mas não faço ideia do que ainda serei.
O dinamismo e concretude matérica das obras desta exposição nos provocam com o enigma do sentir-se outro. Tiago Mestre apresenta um amálgama de cerâmica e pepitas de ouro que reiteram o gesto do fazer(-se). Marcas dos punhos e dos dedos que amassam a argila mole fixam-se após a queima em uma paisagem que nos remete à sombra bidimensional, virtualidade de uma existência da qual pouco sabemos, que acumula gestos e brilhos dos instantes de sua formação. Do teto, uma trama metálica pende como síntese dourada que amalgama as formas da parede. A luz pode passar pelas aberturas desse muxarabi metálico, e confunde o jogo entre o que é real e o que é projeção. Sugerindo ao espectador que aquilo que passou pode tomar novos rumos de existência, a sombra escapa da parede em peças menores de cerâmica que se afirmam reais ornando o espaço da galeria, como se, tornando-se outra, a paisagem declarasse sua permanência em fusão com o incerto porvir.
José Spaniol - Vista da exposição na Casa de Cultura do Parque
O metal reaparece no alumínio fundido das hastes que sustentam um pequeno barco na obra de José Spaniol. Quem já viu as instalações de grande porte do artista vai lembrar da mistura de ludicidade e temor que nos invade frente ao equilíbrio aparentemente frágil de um corpo pesado sustentado por varas de bambu. A peça apresentada na Casa de Cultura do Parque a princípio não assusta; é pequena. Mas, a seu lado, a ossatura torcida do barco transforma-se em espinha de peixe e perturba a segurança ao, silenciosamente, propor o mistério. A vida é pungente e exige a coragem aventureira de um Ahab que luta contra o mar de seus temores amalgamados num corpo de baleia. Na balança, a matéria da cerâmica equilibra o peso dos livros: penso logo livro, cerâmica, mar, haste, barco, baleia.
Na alquimia do mistério, Flávia Ribeiro funde em bronze pequenos vasos que se equilibram com organza de seda, compensando o peso do metal e com a leveza lúdica dos pedaços de tecido. A grandeza do tempo permeia obras feitas com a técnica da fundição do bronze, antiga e perene, que no trabalho da artista exibe o parentesco com a gravura: é no encontro dos corpos, seja do bronze líquido com molde, seja do papel com a matriz entintada, que a forma laboriosamente se reproduz em diversas garrafinhas penduradas nos fios de estanho laminado ou de cobre. A artista funde o tempo das técnicas artesanais com o tempo da transformação dos seres que se fazem no gerúndio, na duração. Daí suas esculturas serem chamadas de pré-objetos. Ainda não são porque ainda estão sendo. Elas se encaixam pousando pernas de bronze em cima de tapetinhos coloridos, num amor pela potência do prévio.
Flávia Ribeiro - vista da exposição na Casa de Cultura do Parque
Tanto na calma dos pré-objetos de Flávia Ribeiro, quanto na instabilidade aventurosa de José Spaniol e no mistério da paisagem indefinida de Tiago Mestre, os materiais impõem-se indiferentes aos nossos anseios existenciais. Eles são porque eles se transformam, deixam-se fundir, amassar, tomar a forma de obras que viram aquele tipo de pensamento que vem quando ele quer e não quando algum eu quer. Agora sinto a mudança, logo eu era.
Feliz de quem vai sendo, sem brigar com o tempo, brincando com o paradoxo do amálgama daquilo que nunca se cristaliza.
Paula Braga, 2022
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