A floresta amazônica tem mistérios, que vão das plantas com poder de cura aos rios voadores. A ciência tenta estudar um ou outro, e quebra o encanto do funcionamento perfeito da natureza. O que adianta a explicação de que os rios não voam, que o fenômeno fotografado por Gabriel Villas-Bôas é vapor denso de água que paira acima das copas de árvores e abaixo das nuvens? Muito mais importante é o impacto de ver fotografias aéreas da floresta com duas camadas de céu. Ver com respeito e ficar intrigado, assustado até, e deixar a floresta em paz na sua existência soberana. Sejam rios, seja céu ou chão translúcido para a dança de espíritos da floresta, o que mais impacta nos rios aéreos das fotografias é que o vapor se estende até onde a vista e a câmera fotográfica alcançam. Alguma hora essa transparência nebulosa vai despencar em água num choque com o paredão dos Andes. Ali, regará a foz de rios terrestres, e fará a curva, correndo em direção ao sul, para molhar o Brasil.
Em outras séries sobre nossas florestas e seus povos, Gabriel Villas-Bôas alinhou a câmera, presa a um drone, paralelamente ao solo e o resultado se assemelhou a pinturas com formas abstratas. Agora, na série Rios Voadores, a câmera está acoplada à proa do drone que navega acompanhando o rio de vapor, rumo ao oeste do continente americano. Este posicionamento coloca o sol poente no ponto de fuga da composição. Como a câmera fotográfica tem apenas uma abertura para a entrada da luz, é inevitável replicar o esquema da perspectiva renascentista de linhas convergindo para este ponto solar. No entanto, a composição obtida é algo nunca visto nas paisagens da história da arte europeia, simplesmente porque rios europeus não voam. Os nossos rios têm sua contrapartida alada, como um duplo anímico que os alimenta de água de quando em quando. É preciso então inventar uma paisagem específica para nossa terra, como Villas-Bôas vem fazendo, no caminho aberto por outros fotógrafos da floresta, especialmente a grande Claudia Andujar.
Um modelo de paisagem, que fique claro, não é simples decorrência de uma tecnologia.
Nem toda fotografia e nem toda pintura precisam representar a paisagem dando centralidade ao observador, nem emoldurar a cena com galhos, tampouco fazer as linhas convergirem rigidamente para um ponto. Cada vez que isso aconteceu na história da arte, foi uma escolha, uma decisão para representar a natureza como aquilo que foi dominado, que está bem compreendido e controlado. Nada disso se vê nas paisagens aéreas de Gabriel Villas-Bôas. O que o fotógrafo registra é o encanto, o mistério da gaze branca que envolve o topo das árvores. Impossível não pensar nos xapiris dançantes – os espíritos da floresta descritos por David Kopenawa no fundamental livro A Queda do Céu – furando a gaze aqui e ali por brincadeira. E é inevitável considerar o sol como o único poder central, evaporando a água do mar e convocando a transpiração das árvores para adensar o vapor desses rios que parecem um segundo céu.
O pensamento que nos separou da natureza é seco. Que venha uma época de chuva amazônica.
Paula Braga, 2023.
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