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33a - A bienal neoliberal

Writer's picture: Paula BragaPaula Braga

Updated: Jan 8, 2019

Em uma entrevista para o El País, o curador Gabriel Perez-Barreiro declara que quis fazer uma bienal atraente para as pessoas. Diz ele: “Ser relevante para os artistas é um adicional, e aqui se cuida disso, mas é o momento de atrair as pessoas. A arte contemporânea já possui muitos mecanismos de auto-exclusão.”

É difícil entender o que Barreiro quis dizer com a arte contemporânea ter mecanismos de auto-exclusão. A arte contemporânea exclui a própria arte contemporânea? Se for isso, compreende-se por que logo na entrada há uma bancada com esculturas de José Moreno Cascales, dos anos 1950. E justifica a escolha de Jean Arp no cartaz. Mas talvez o curador tenha simplesmente cometido um erro de discurso ao usar a expressão “auto-exclusão”.

De fato, o discurso não é o forte dessa bienal. Ou o discurso está distorcido como na interpretação que Sofia Borges faz do mito da caverna de Platão ou deliberadamente desprezado como no texto de apresentação do módulo organizado por Waltercio Caldas, no qual o artista da forma perfeita afirma que ele “trata as questões como gostaria, sem torná-las discursivas, colocando sob suspeita as justificativas e teorias estéticas […], evitando quaisquer conceitos” e segue dizendo que “as verdadeiras obras de arte ignoram qualquer discurso que as desvirtue e são suficientemente eloquentes para desautorizar interpretações oportunistas”.

A 32a bienal foi acusada na imprensa de ter sido excessivamente discursiva. Jochen Voltz e seu time de curadores abordaram a teoria descolonial, questões de gênero, efeitos de drogas lisérgicas, o antropoceno, entre outros discursos que significam a contemporaneidade. Barreiro optou por reunir um time de curadores que não tocasse em assuntos desagradáveis. Terceirizar a curadoria da mostra para sete artistas foi a estratégia de Barreiro para tornar a bienal muda.

Mas o discurso é inevitável e Barreiro optou por um bastante palatável: a terceirização da curadoria para não-especialistas produziria uma horizontalidade de poder curatorial, abolindo a hierarquia que confere ao curador especialista a responsabilidade de reunir obras de arte contemporânea dignas de uma mostra dessa proporção. É o mesmo que dizer que contratar professores de matemática que sabem apenas a tabuada do 2 produziria uma horizontalidade de poder matemático em sala de aula.

O que nos faz perguntar: o que queremos de um curador de uma bienal? Que ele pesquise e nos apresente o melhor da arte contemporânea de um biênio. E o melhor da arte de uma época deveria ser a arte que funciona como signo de vida e de transformação. Acontece que não é tarefa fácil ser acessível e simultaneamente transformadora. A transformação sempre apresenta o que não é familiar, o que é complexo, de difícil compreensão. E o bom curador, como o bom professor de matemática, nos conduz rumo a operações mais complexas do que as que já conhecemos.

Mas, contentemo-nos com uma definição menos ambiciosa de arte para lidar com a 33a bienal de SP. Podemos esperar que ao menos uma bienal apresente obras que sejam o retrato de sua época, registros dos hábitos cotidiano e de pensamento. Nesse caso, compreende-se por que alguns têm chamado esta edição de Bienal do Neoliberalismo, como tentativa de construir um discurso mínimo para um aglomerado de obras desconectadas, mas coerentes com o comportamento mediano. Cartazes ao lado de obras de arte dizendo “todas as coisas são todas as coisas” ou “o brilho do invisível” são postagens perfeitas para as redes sociais e hoje em dia todo mundo sabe fotografar alguma coisa que pareça minimamente agregadora de valor a si mesmo e publicar a foto em seu perfil -- do cartaz e do próprio rosto, e não da obra.

Em entrevista à revista Casa Vogue, o curador diz que é uma bienal feita “para que ninguém se sinta fracassado, não são obras que requeiram um conhecimento prévio de arte”. De fato, essa missão foi cumprida. O visitante fotografa um desses cartazes ou uma escultura dos anos 1950, compartilha na rede, e sente-se socialmente adequado. Compartilhar é uma das ações participativas sugeridas pelo educativo, que parece centrada na celebração do indivíduo:

(1) encontrar uma obra que parte de um processo subjetivo de identificação; (2) dedicar atenção, com caminhos que vão de perceber a superfície da obra até reconhecer o que há de você ali; (3) registrar a experiência, que pode ser escrever suas impressões, praticar um movimento corporal a partir da experiência ou mesmo reconhecer os sentimentos que a obra provocou e guardar essa sensação; e (4) compartilhar.

O que é uma bienal que recusa o discurso, que quer propiciar “descanso para a cabeça", que permite que um dos artistas curadores inclua obras de seu avô (Antonio Ballester Moreno curou uma sessão com obras de José Moreno Cascales), que valoriza o culto ao passado, e quer simplificar, ser acassível. Pode a arte ser tão acessível e rasa e ainda cumprir com seu papel de ser signo de vida? Só se for da vida na era do neoliberalismo.

O título escolhido pelo curador, Afinidades afetivas, mistura um pedaço do título do livro de Goethe “Afinidades eletivas" com uma palavra da tese de Mário Pedrosa (A natureza afetiva da forma). Eu cito Barreiro: "O livro de Goethe tem 200 anos, mas traduz o mundo em que vivemos: basta pensar na constituição das redes sociais e em como as pessoas fazem escolhas e inventam suas próprias realidades a partir delas. Elas selecionam esses elementos por afinidades e isso pode ter resultados diversos” , explica o curador à Casa Vogue sem esclarecer a menção de Mario Pedrosa no título. A revista enfatiza na reportagem os espaços de "descanso para a cabeça”, ideia fundamental da curadoria e do projeto educativo, que estariam favorecidos pelo desenho generosamente espaçoso do Pavilhão – 25 mil metros quadrados que não são obra dessa curadoria --, um café (erroneamente apresentado na revista como novidade), uma livraria e espaços de conversa e de apresentações, todos confortos também oferecidos em edições anteriores.

A menção ao descanso para a cabeça evoca a moda do mindfulness, que nada mais é do que a meditação fagocitada pela razão empresarial. Daí a inclusão na mostra do filme de Maria Laet exibindo uma réstia de luz no chão da própria bienal. A luz na bienal. A encenação de Memórias Póstumas de Brás Cubas filmada por Tamar Guimarães na bienal. O espaço do prédio da bienal. Os funcionários da bienal. Cenas de curadores conversando sobre habitantes invisíveis do prédio, que são simplesmente outros curadores e artistas que passaram pela bienal. A auto-referencialidade fecha qualquer porta de escape, como a razão neoliberal, e auto-contém-se em individualismo, em bolha, em networking. Afinidades afetivas é título para uma mostra feita por um grupo fechado, uma casta, os escolhidos, divertindo-se em referências a si mesmos e a seus amigos. Imitando a estratégia de blogueiros com milhares de seguidores, tentam ser acessíveis, exibicionistas generosos para um público de voyeurs medíocres. Estes artistas-blogueiros parecem uma versão neoliberal do artista-etc de Ricardo Basbaum, esvaziado do seu sentido original. No texto de Basbaum, cujos diagramas devem ser a fonte inconsciente da obra da também carioca Luiza Crosman, a ambivalência aponta para a utopia da horizontalidade e para a distopia da auto-referencialidade:

"Quando artistas realizam curadorias, não podem evitar a combinação de suas investigações artísticas com o projeto curatorial proposto: para mim, esta é sua força e singularidade particulares, quando em tal engajamento. O evento terá a oportunidade de mostrar-se claramente estruturado em rede de nós próximos, aumentando a circulação de energia ‘afetiva’ e ‘sensorial’ – um fluxo que o campo da arte tem procurado administrar em termos de sua própria economia e maleabilidade […] Amo os artistas-etc. Talvez porque me considere um deles, e não é correto odiar a mim mesmo."

Se houve uma apropriação do texto de Basbaum sem o devido crédito, ela veio acompanhada de um mau entendimento do conceito de artista-etc. Para Basbaum, o artista-etc é aquele que questiona a natureza e a função de seu papel como artista, e que Basbaum gostaria de ver como curador da próxima Documenta. Ou que ele gostaria de poder odiar se isso não fosse auto-destrutivo, pois sabe que o artista-etc fecha-se em auto-referencialidade.

Em suma, esta é a Bienal do Neoliberalismo porque parece obedecer a um briefing que encomendou neutralidade, vazio de pensamento, sensação de calma e de que tudo vai ficar bem. Mas o que esta bienal realmente profetiza é que a reforma trabalhista vai ser um desastre.


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